A
MEMÓRIA É UMA ROSA ABERTA
EVOCAÇÃO DO PARQUE DA PENA
COMUNICAÇÃO AO III ENCONTRO DE HISTÓRIA DE SINTRA, PROMOVIDO PELA ALAGAMARES EM MAIO DE 2007.
COMUNICAÇÃO AO III ENCONTRO DE HISTÓRIA DE SINTRA, PROMOVIDO PELA ALAGAMARES EM MAIO DE 2007.
É
de memória que venho conversar. E de reconhecimento. Lembro o meu Pai, António
Medina Júnior que, com uma letra de bom desenhador que era, me deixou escrita,
num minúsculo papel, a seguinte frase: “O reconhecimento é a memória do
coração.” Creio que entendi. Creio que aprendi. Conservo o papel.
Reconhecidamente,
saúdo a família de Carlos de Oliveira Carvalho, nas pessoas de seus netos,
Carlos e Maria Luísa, e de sua bisneta Teresa – a quem me ligam laços fortes de
amizade e de companheirismo académico – que tão solícitos foram em ceder-me um
sem-número de informes. Saúdo, ainda, a minha querida amiga Emília Reis que,
felizmente, fez de Sintra sua terra
de adopção, direi de devoção e, com tanto empenho, me acompanhou e ajudou a
documentar este trabalho que, sem ela, se apresentaria mais pobre.
E
como de memória de coração se trata, lembro José Alfredo da Costa Azevedo, meu
amigo-irmão já falecido, que me ensinou alguns caminhos verdes desta nossa
terra – entre eles, os que me fizeram ir ao encontro de José Jorge Morgado,
jardineiro do Parque da Pena, nos anos 40, e de sua mulher, que se nos dava
pelo nome de ti’Adelina. Uma lembrança comovida para todos eles. Uma vénia à
Exma. Assistência e aos meus Colegas de mesa. Outra vénia à Alagamares que teve
a iniciativa deste Encontro; outra à Câmara Municipal de Sintra que,
compreensivamente, o apoiou.
Quando
eu era menina, visitava a casa de Carlos Eugénio de Oliveira Ferreira de
Carvalho, o tão conhecido e estimado “Carvalho da Pena”. Nascido em 1870,
faleceu a 25 de Julho de 1940 na “Vila de S.Miguel” situada em Sintra, na Rampa
do Castelo, onde se encontra, também, a Quinta da Abelheira, que foi habitada
pelo rei D.Fernando enquanto decorreram as obras de construção do Palácio da
Pena. Um pouco abaixo, na base da rampa, funcionou o colégio-liceu de Santa Maria,
– hoje o nº. 1 da Rua da Trindade – mais tarde residência do Dr. António Joyce,
director da Emissora Nacional.
O
“Carvalho da Pena” passava, garboso, a cavalo, de capa ao vento, como um
príncipe das estórias, chapéu de abas largas e uma bigodaça farta.
Depois
de D. Fernando e da Condessa d’Edla, foi ele um dos mais importantes fomentadores
da plantação florestal do Parque da Pena. A ele se deve, também, o mérito de
cuidar, com humanidade e preocupação, do pessoal trabalhador e guardas
florestais, criando condições higiénicas nas casas onde viviam com suas
famílias.
José
Alfredo da Costa Azevedo, num artigo publicado a 4 de Novembro de 1972,
no “Jornal de Sintra”, escreve: “No tempo
do antigo regente Carlos de Oliveira Carvalho, não se cortava uma árvore sem
sua autorização. Que saudades do velho “Carvalho da Pena!”.
Uma
vez, já ele se encontrava doente, convidou-nos a dar um passeio no seu trem
privado. Corremos grande parte da serra e, sem solenidade alguma, um guarda,
por sua ordem, afastou uma grande pedra que vedava a entrada de uma estrada
para os lados da Peninha. O trem seguiu e o velho Carvalho, esse grande e
saudoso funcionário público, a quem Sintra tanto ficou a dever, disse: “Pronto! Inaugurámos, oficialmente, mais uma
estrada na nossa majestosa serra!...
Depois,
já no Parque da Pena, junto às estufas, estando presente o guarda José
Morgado (outro grande e competente funcionário, já falecido), notámos que o
nosso saudoso e malogrado amigo Carvalho tinha lágrimas nos olhos...
Inquirimos: “então, que é isso?”. Resposta: “tolices de velho! Mas vejo que estou no fim e não sei quem tratará
amorosamente disto, depois da minha morte...”José Alfredo comenta: “tinha razão para chorar.”
O
engenheiro silvicultor Prof. Mário de Azevedo Gomes, neto da Condessa d’Edla,
também ele lhe faz dezenas de referências elogiosas na sua “Monografia do
Parque da Pena”. Tomou mesmo como ponto de partida para este seu trabalho o “Guia
do Parque da Pena”, o mapa-planta à escala de 1/2500, de 1918 e os livros de
campo do Administrador Florestal.
O
“Guia”, com texto em português e francês, insere uma descrição geográfica e histórica
dos monumentos e sítios importantes a visitar, documenta as espécies arbóreas e
jardins, e é acompanhado de uma planta onde estão sinalizados com as
respectivas cotas para mais facilmente poderem localizar-se. Repare-se que a
entrada no Parque era pública e gratuita a todos os peões que o desejassem
visitar, desde o nascer ao pôr do sol “sic”, e que: “Os visitantes teem direito a seguir de carruagem ou a cavallo até ao
Palácio, entrando pelo Portão Principal, mas os que desejam percorrer o Parque,
utilizando-se dos mesmos meios de condução, são obrigados ao pagamento da taxa
de livre trânsito da seguinte importância: Trem ou automóvel – 5 escudos Cavalo
– 2 escudos e 50 Bicicleta ou jumento 1 escudo e 50 centavos”
É
curioso que este “Guia” tenha sido editado pela importante e saudosa livraria e
papelaria centenária “A Camélia”, de Júlio Pinto Tavares. Numa das referências
a “Carvalho da Pena”, Mário de Azevedo Gomes aponta uma captação moderna de
água para um tanque da rega, que correspondeu, suficientemente, às necessidades
dos viveiros e fala da criação de percursos redondos e de meia-lua, para
facilitar os acessos na Tapado do Mouco, onde se situa o Chalet com o mesmo
nome. Foi este residência de D. Augusto, filho de D. Fernando, e de seu
ajudante de campo, bem como de Domingos Morgado e filhos, um dos quais, José
Jorge, que eu conheci.
Informa,
também, que, no tempo do antigo administrador, no Chalet da Condessa funcionava
um Museu Florestal, aberto de 12 em 12 horas, até ao sol posto, com exposição
de madeiras e outros produtos florestais e refere um viveiro de espécies
florestais exóticas para venda avulso e vulgarização.
Não
me alongo mais no apoio às citações – inúmeras e elogiosas – que correspondem
às obras de beneficiação introduzidas por Carlos Carvalho, quer a nível
florestal quer a nível de estruturas em que estão incluídas as casas de
habitação de pessoal, a que, já atrás, referi. Uma vontade férrea e um carácter
notável caracterizavam “Carvalho da Pena”. O “Diário de Noticias” de 30 de
Julho de 1924, precisamente o dia seguinte ao da inauguração do Casino, noticia
que a Sociedade de Turismo de Sintra se propôs iluminar o Castelo dos Mouros, o
que foi aprovado pelo Ministério da Agricultura. O administrador do concelho,
entretanto, não consente a iluminação porque o Ministério da Instrução a
proibia. Carlos Carvalho objectou que, como também fazia parte daquela
Sociedade e era funcionário do Ministério da Agricultura, só do seu ministro
recebia ordens. O mal-entendido desfez-se e o Castelo acabou por ficar
iluminado.
Mais
tarde, aquando do falecimento da Condessa d’Edla, no Diário de Lisboa” de 23 de
Maio de 1929, na rubrica “A Cidade”, diz-se: ““Publicamos, abaixo, uma carta
que nos é enviada pelo distintíssimo engenheiro florestal, Homem de bem e homem
de acção, Sr.Carlos de Oliveira Carvalho, que superintende nas Matas Nacionais
de Sintra e, portanto, no Parque da Pena, a que está ligado o nome da ilustre
senhora que ontem desapareceu do silêncio da sua casa de Santa Marta para o
silêncio eterno do túmulo.
Transcrevo:
“Sr. Director – O Diário de Lisboa de
anteontem publicava um belo artigo, em fundo, e que se intitulava A Senhora
Condessa d’Edla. Dele recorto o período final: Dentro de três dias nem nós nos
lembraremos do que acabamos de evocar, e na história ela não será já nem sequer
um pretexto. Quando muito – se algum cronista romântico para ahi ficar - um
ramo de cravos...Não será assim. Permita-me, sr. Director, que prove que o não
será. O Parque da Pena, em Sintra, iniciado em 1839, pelo Rei D. Fernando II,
hoje considerado como uma das mais notáveis colecções botânicas florestais do mundo,
propriedade do Estado, e que é uma prova do génio artístico desse rei e do seu
amor a Portugal, muito deve à colaboração da senhora Condessa d´Edla, desde o
seu casamento em 1869. Dirigia ela directamente os trabalhos com seu esposo,
conhecendo o valor das espécies botânicas, a sua colocação, tratamento, e ainda
há dois anos as citava pelos seus nomes scientíficos. E não quero deixar de lhe
narrar um simples facto de comovente significação: Em Novembro do ano passado,
a senhora Condessa d’Edla solicitou, na sua gentileza de espírito, ficasse
assinalada uma árvore plantada por ela e D. Fernando, no dia do seu casamento,
a 10 de Junho de 1869. Veja v., sr. Director, quanto pode significar este
pequeno detalhe, em favor da alma daquela ilustre Mulher. A Administração dos
Serviços Florestais conserva o nome de “Jardim da Condessa d’Edla” a um dos
mais belos trechos do Parque e por ela delineado.
Desta maneira o seu nome está ao
Parque vinculado, e recordando a todos, “não só por um ramo de cravos de
algum romântico”, mas sim, e principalmente, por maciços de flores, a sua acção
e o seu espírito de mulher tão afeito à Patria adoptiva, e à “domus”
encantadora de Sintra, onde ela viveu. Se o seu corpo tem de repousar ao abrigo
de uma Cruz, cópia da Cruz Alta do Parque da Pena, as árvores e as flores
recordarão em Sintra o seu nome, enquanto uma simples placa de mármore não
indique aos visitantes que foi a D. Fernando II e sua esposa, Condessa d’Edla,
que o País deve a existência de um dos mais belos parques da Europa e talvez
mesmo do mundo. Dando, estas informações a v., sr. Director, não correspondem
elas de maneira alguma a uma renúncia das minhas ideias políticas, mas sim elas
são uma homenagem à ilustre senhora que aureolada pela sua idade e respeitada pela
nobreza da sua alma, terminou docemente a
existência.De v. Etc., Carlos de Oliveira Carvalho – (Parque da Pena – Sintra) ”
Também
no “Jornal de Sintra” de 11 de Agosto de 1935, pode ler-se, a propósito da
colocação da lápide-homenagem a D.Fernando II, no Parque da Pena:
““A Vila de Sintra salda hoje,
para com a memória de D.Fernando II, uma dívida de reconhecimento e gratidão
(...) Desejamos significar o nosso modesto mas vivo contentamento, ao Sr. Carlos
de Oliveira Carvalho, por haver conseguido levar a bom termo uma pesada empresa
que fica a atestar a gratidão de Sintra para com a memória dum inteligente
monarca a quem Portugal deve um dos seus mais formidáveis jardins de beleza e
encanto como talvez segundo não haja em toda a Europa. Merecida homenagem a
quem sonhou – e cito: “o Palácio suspenso sobre aquela floresta encantada que é
o Parque da Pena”.
Considerando
que está por saldar a dívida de Sintra a “Carvalho da Pena”, já que só uma
pequena lápide o lembra, no Parque da Liberdade, assumo uma sugestão/pedido:
que
seja colocada uma placa na “Vila de S.Miguel” onde sempre viveu, desde 1911 até
à data do seu falecimento, em 1940, e que seja dado o seu honrado nome a uma
rua de Sintra. Este à-vontade em sugerir e pedir advém-me, com certeza, do
diálogo com o minúsculo papelinho escrito pelo meu Pai. Advém-me, com certeza,
do diálogo com fetos e árvores, do diálogo com as begónias tuberosas do sr. José
Jorge e da ti’Adelina – e do diálogo com eles, também. É que a Feteira da
Condessa era uma sinfonia: água a dessedentar os fetos; pingos de sol, por
entre os verdes dos recantos frescos. Personagem relevante desta magia, o
Chalet da Condessa, hoje fantasma de si próprio, por descuido dos homens que
não sabem de sonhos de “eucaliptus
oblíqua” –nem de património.
E
como é de memórias que tenho vindo a conversar, recordo, por último, em reportagem
retrospectiva, que:
Foi
no Inverno de 1944 que um grande nevão queimou Sintra. Fogo branco na serra,
nas casas, nas ruas. Praticou-se o esqui na estrada da Pena. As árvores e os
fetos, derrubados, formavam abrigos fantasmagóricos. Bonecos de neve,
gigantescos, contracenavam com a vegetação, nessa euforia branca sem limites. Lembro-me
da ti’Adelina, de carrapito muito acima da nuca e gola alta a beijar-lhe o
queixo: “Minhas ricas flores! Que feio
que está o Parque! Que tristeza isto assim tudo branco!” Estávamos no Vale
dos Fetos. A Feteira da Condessa era uma catedral de neve: fetos altos como
palmeiras, vergados, numa sugestão de naves e colunas. O marido da ti’Adelina,
o sr. José Jorge, era jardineiro do Parque há tantos anos que já nem lhes sabia
a conta. Amava a sua colecção de begónias tuberosas e as árvores que vira
crescer. Baixinho, magro, com os olhos felizes, palradores, o sr.José recordava
que o pai, Domingos Morgado, tinha sido jardineiro da Condessa; tinha vindo de
Mem Martins muito novinho e, dotado de uma vocação para a jardinagem, por ali
ficara. E assim se tornou
indispensável
a D.Fernando e um dedicado colaborador da Condessa d’Edla. Foi ele quem a
ajudou a delinear “a parte nova” que vai do Jardim Inglês à Tapado do Mouco.
Domingo Morgado era capaz de passar noites sem dormir para salvar uma árvore
empestada de parasitas. Mais tarde, havia de ser elogiado por D.Fernando na
presença do Príncipe de Gales, que veio a ser Eduardo VII.
E
quando a morte o levou, ficou o sr. José Jorge a substituí-lo. À Condessa d’Edla,
conhecedora profunda de arvoredo exótico e de botânica em geral, devia o sr.
José Jorge tudo o que sabia. Às vezes via-a a recolhe-se a um dos mirantes,
perto do chalet, a fim de preparar chá, em segredo, com as plantas do Parque.
Ele ficava de guarda. Entretanto, num jornal saloio da época – “O Correio de Sintra”, de António Cunha -
apareceu um artigo que se referia ao possível desaparecimento das plantas de chá
que por lá havia. Mas a plantação aumentara, sim, em mais de um cento de pés, e
o desmentido foi feito em jornais da capital.
“Ainda lhe falei uns dois meses antes de ela
morrer” – acrescentou o sr. José Jorge. “Morava lá para o fim da Rua de
Santa Marta, num prédio já demolido. Entregou-me um bilhete para o sr. Carlos
de Oliveira Carvalho, regente florestal, a indicar as árvores que deviam ser
plantadas no outro lado da serra – Peninha e Capuchos –, as quais resistiam
mais aos ventos predominantes, para abrigo da nova arborização. O sr. Carvalho
achou muita graça: contando noventa e tal anos e ainda interessada pelas suas
árvores!
Já
em vida de D. Fernando tinha pensado nesse lado da serra, mas ele não concordou
em arborizá-la, para não estragar os pastos de gado da gente pobre”.
Num
recanto do Parque da Pena, a dois passos do “chalet” da Condessa, já não mora a
ti’Adelina. Nunca mais o sr. José Jorge falará a alguém das “suas” árvores e
das “suas” begónias. Na Feteira da Condessa a água continua a dessedentar os
fetos altos como palmeiras e verdes como a ti’Adelina os queria... Nos lagos,
os cisnes deslizam sem recordações. Ainda estou a ver o sr.José a abrir-me um
portão que dá para a Estrada Velha. O portão fechou-se. “Até breve, amigos!” O
portão fechou-se já lá vão mais de 60 anos.
Sintra,
Palácio Valenças, 4 de Maio de 2007
MARIA
ALMIRA MEDINA
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