A ÉTICA DA FELICIDADE EM “CARTA
SOBRE A FORTUNA” DE MATIAS AIRES
O pensamento de
Matias Aires exprime a ambiguidade cultural presente ao longo dos reinados de
D. João V e D. José I/Marquês de Pombal, ou, como Violeta Crespo Figueiredo
resume, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, o livro filosófico mais importante
de Matias Aires, constitui-se como “uma encruzilhada, por onde o autor quase
sempre se esquivava, compelido tanto pela conjuntura repressiva como pelas contradições
pessoais, e nomeadamente pela hesitação entre o ideário conservador e as correntes
ideológicas assimiladas durante a estada em França”.1 Nascido em São Paulo,
Brasil, no ano de 1705, ano em que D. João V ascende ao trono, Matias Aires acompanha
a família na viagem para a Lisboa, em 1716, onde o pai se instala num palacete
na zona das Mónicas, perto do mosteiro de São Vicente de Fora. O seu pai, José
Ramos da Silva, nascido no povoado agrícola de Arrifana de Sousa, no Norte de Portugal,
partira jovem para o Brasil para fazer fortuna, trabalhando, primeiro, como criado
de servir e, depois, como mercador de loja aberta. Convivendo com os “bandeirantes”,
porventura dedicando-se ao garimpo de ouro, esmeraldas e diamantes e, mais
tarde, ao “fornecimento de géneros”2 para as expedições que partiam de São
Paulo, torna-se num dos homens mais ricos do Brasil. Desde este momento, toda a
sua vida, no Brasil e em
Portugal, pode ser sintetizada numa permanente tentativa de ascensão social,
com o objectivo de conquistar um estatuto superior nobilitante, que a sua condição
de origem não permitia, mas a fortuna económica atraía. Apenas no ano da sua morte, em 1743,
receberá carta de brasão de armas. Matias Aires, único filho varão de José
Ramos da Silva, não pode deixar de ter sido influenciado pelas incessantes tentativas
paternas para atingir um estatuto social nobilitado. O seu pai é um abundante benemérito
de igrejas e conventos, empresta dinheiro a nobres (dos quais dificilmente consegue
retorno, como aconteceu com as quantias emprestadas ao conde da Ericeira e ao
marquês de Valença), e ostenta nababamente a sua colossal fortuna, como no processo
de habilitação ao hábito da Ordem de Cristo.3 Com efeito, Matias Aires bem poderia
testemunhar nas suas reflexões que, mais do que pelo dinheiro, pela virtude, pela
fé, pelo amor ou pela honra, seu pai sempre se guiou pela vaidade, seja
procurando esconder a condição de filho de lavrador pobre, seja tentando
elevar-se a um estatuto de dignidade social que, em opulência, ombreasse com o
da nobreza. Conhecendo-se historicamente a vida de seu pai, suspeita-se da
dupla humilhação que Matias Aires terá sofrido pela primeira recusa da sua
própria habilitação ao hábito da Ordem de Cristo, em 1727 (privilégio que, no
entanto, lhe será concedido, em 1729, em troca de uma subvenção para custear a
estada de dois marinheiros na Índia),4 e pela terminante recusa do barão da
Ilha Grande em lhe conceder a mão da filha, devido à condição social de Matias
Aires, preferindo entregar a filha a uma clausura forçada no convento.5 Nova dupla
humilhação se segue, a humilhação rácica da cor mulata de sua pele, provinda da
ascendência brasileira de sua mãe, e a humilhação, em Lisboa, do estatuto
familiar de “brasileiro”, socialmente equivalente à de endinheirado sem cultura
nem polidez de maneiras. Deste modo, não é difícil de entender a razão por que
Matias Aires escolheu a vaidade para
tema das suas meditações. Com efeito, tanto o exemplo da vida de seu pai, modelo
do que um homem seria capaz de fazer por vaidade social, quanto algum consciência
de culpa do próprio Matias Aires por não ter correspondido às expectativas do
pai (não só não acrescenta um vintém à fortuna paterna como o cargo oficial que desempenha do
pai o herda – o de provedor da Casa da Moeda -, como, ainda, os conflitos
testamentários entre Matias Aires e a irmã Teresa Margarida desbastavam a fortuna
herdada),6
o
terá levado a escrever um elogio da vida paterna, Discours
Panégyrique sur
la Vie et Actions de Joseph Ramos da Silva, publicado em 1759, segundo
indicações de Barbosa Machado, na sua Biblioteca Lusitana, já que nem o
livro nem o manuscrito
foram encontrados.7
De
facto, Matias Aires é, desde pequeno, testemunha de um conjunto de acções de
seu pai na tentativa de ostentar a sua personalidade e
de enobrecer o nome familiar:
1. – Em 1711,
Matias Aires, “tinha 6 anos quando (...) os franceses, comandados por
Dugauay-Trouin, atacaram e saquearam o Rio de Janeiro. Nesse período difícil,
em que muitos notáveis entraram em pânico, o pai, José Ramos da Silva, soube
distinguir-se.
A expensas suas,
levantou uma companhia de soldados e reuniu escravos e amigos, organizando-os
para a defesa da vila da Ilha Grande. Fez mais; fingindo-se pobre e parcial dos
invasores, conseguiu ser recebido a bordo de suas naus, trazendo de volta informações
valiosas. Passado o perigo, já não era apenas um homem rico e influente, era
também um herói – pelo assim aparecia aos olhos de Matias Aires”;82. – Em 1712,
José Ramos da Silva ofereceu um Te Deum em honra da filha primogénita de
D. João V: “um espectáculo enorme como uma apoteose, deslumbrando o rapazinho
que a ele assistiria de um lugar privilegiado. Gente, incenso, ouro, coros, luzes,
tudo lhe haveria de ter parecido a recompensa unânime e magnífica da superior liberalidade
da sua família”;9
2. – Em 1719, já em Lisboa, para
onde a família viera em 1716, José Ramos da Silva era nomeada representante do
Senado de São Paulo perante D. João V;
3. – “Em 1720, arrematava por um
triénio o contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro a um preço mais
alto que o habitual”;10
4. - Em 1721, depois de duas
recusas, devido à sua condição social, consegue o hábito de cavaleiro da Ordem
de Cristo;
5. – Em “1722, comprava o muito
reputado ofício de provedor da casa da Moeda”;11
6. – José Ramos
da Silva interna as duas filhas, Teresa Margarida e Catarina, em conventos: “só
com a filha Catarina despende ele 15 mil cruzados no Convento das Trinas e,
seguidamente, outros 20 000 na sua transferência para o Convento de Odivelas.
Aí, entre móveis luxuosos, pratas e criadas, ela passa a receber uma tença
anual de 400 000 réis (mil cruzados), tendo previamente renunciado, por escritura
pública à sua herança”,12
tal
como a filha Teresa Margarida;
7. -
Liberalmente, José Ramos da Silva faz avultados empréstimos financeiros a diversos
nobres;
De certo modo,
Matias Aires, ao longo da sua existência, e nomeadamente até à morte de seu
pai, em 1743, imita a ânsia de promoção social de seu pai:
1. – Em 1727,
com 22 anos, habilita-se pela primeira vez ao hábito da Ordem de Cristo, que
lhe é recusado com as mesmas alegações porque fora primitivamente recusado a
seu pai – humildade de condição;
2. – Como foi
referido, e sempre segundo informações de Violeta Crespo de Figueiredo, tentar
casar com a filha do Barão da Ilha Grande;
3. – Nos anos de
1726/27, após ter golpeado na língua uma escrava e de ter sido condenado a
quatro anos de degredo em Castro Marim, parte para a Europa em viagem, instalando-se,
primeiro, em Baiona, na corte do infante D. Manuel, desentendido com seu irmão,
rei D. João V, e depois para Paris, onde termina o curso em Direito Civil e Canónico,
que deixara incompleto em Coimbra, onde se matriculara em 1722;
4. – A partir da
estada em Paris, altera o seu nome de Matias Aires José da Silva para Matias
Aires José da Silva D’Orta, este último o apelido da mãe; mais tarde acrescentará
ora de Eça, ora e Eça, nobilitando os apelidos.13
5. – Um ano após
a morte do pai, Compra por 80 000 cruzados o palácio do conde de Alvor, actual
Museu nacional de Arte Antiga, onde passa a viver;
6. – Pede a seu
amigo Francisco Mendes Góis, vivendo em Paris, que lhe encontre uma noiva
francesa para casar, educada em convento pois “para viver em Portugal é preciso
não saber que coisa é França”, intento que nunca se realizará;14
7. - “Em 1751
casa-se por procuração com D. Genoveva Antera de Noronha, senhora de 22 anos,
aparentada com gente nobre; mas segundo ele (Matias Aires) informa no seu
testamento, o casamento virá a ser dissolvido por “rato e não consumado”.15
Culto, educado,
viajado, formado por Paris, consciente de níveis sociais inultrapassáveis,
Matias Aires terá abandonado, a partir da década de 40, em ano incerto, as
pretensões de nobilitação social, iniciando um processo de crítica das instituições
tradicionais, nomeadamente as vinculadas ao estatuto da nobreza, de que inúmeros
parágrafos de Reflexões manifestarão posteriormente. É possível que a
morte do pai, em 1743, a perda do processo judicial contra as pretensões da
irmã Teresa Margarida ao direito à herança paterna, em 1745, tivessem
contribuído para um arrefecimento da necessidade de convívio social em Matias
Aires. No entanto, em 1744, no centro da década da sua crise,
que terminará com a apresentação para publicação, em 1750, do seu livro maior aos
serviços de censura do Santo Ofício, “corre o boato de que pretende comprar por 70 mil
cruzados o cargo de secretário da Guerra”.16 Em 1742, nascera-lhe o
primeiro filho, José, fruto da sua ligação com a senhora Helena Josefa da Silva; desta
ligação permanente, independente das pretensão de Matias Aires a casar com uma
senhora francesa e, posteriormente, ao seu casamento inconsumado com D. Genoveva
Noronha, nascerá um segundo filho, Manuel Inácio, em 1748, o filho predilecto,
que lhe herdará o laboratório de Química e os livros.
Propriamente,
não nos parece ter havido um acto de dessocialização por parte de Matias Aires,
mesmo quando se recolhe à quinta da Agualva herdada do pai, já que continuará a
exercer o cargo de provedor da Casa da Moeda, até 1760,ano em que é suspenso
desta instituição pelo Marquês de Pombal por profundos e prolongados
desentendimentos com os trabalhadores moedeiros e cunhadores. Morrerá logo em
1763, em Agualva, onde os seus restos mortais repousarão na capela da quinta,
acompanhados dos corpos de sua mãe, de seu pai, de sua irmã Catarina (que
abandonara o convento após o terramoto de 1755) e de Helena Josefa da Silva.17
Como referimos,
não parece ter havido um processo de dessocialização na existência de
Matias Aires,
que apenas no final da vida se orgulhará da “parda roupa que me cobre, a barraca
humilde que me alberga, o campo verde que me alimenta, o bosque solitário que me diverte,
estes são os únicos despojos de que a morte há-de privar-me; despojos pobres, e
que só servem para injúria da vitória”,18 mas um processo de interiorização psicológica
que o levará, filosoficamente, a constatar da inutilidade de toda a acção humana,
sempre fundada na vaidade. Por um lado, reflexão fundada na vivência da sua família
e da sua própria existência, e, por outro, interiorização psicológica profunda
da experiência humana em geral, a obra de Matias Aires afasta-se, assim, tanto
da tradição filosófica portuguesa institucional, centrada na teoria escolástica
jesuítica, que certamente estudara como aluno do colégio jesuíta de Santo
Antão, em Lisboa, quanto das novidades científicas “modernas”, representadas
pelo proselitismo filosófico dos membros da Congregação de São Filipe de Nery e
enunciadas nos volumes da Recreação Filosófica, de padre Teodoro de
Almeida, cujo primeiro volume é publicado no ano de 1750,
ano em que Matias Aires dá por finalizado o seu livro maior. Além de pessimista,
António Braz Teixeira não hesita em classificar a filosofia de Matias Aires de
autónoma face às correntes teóricas da época: “... e Matias Aires, nas suas Reflexões
sobre a Vaidade dos Homens, preferirá correr o risco de um pensamento
autónomo, de assumido e arrojado pessimismo”.19 A originalidade da obra de Matias
Aires radica justamente no singular facto cultural de, por via da
interiorização psicológica do seu autor, permanecer imune a todas as
influências dominantes da vida cultural portuguesa, mesmo quando as suas
conclusões coincidem com posições política ou culturalmente dominantes, como
aparentemente é caso da sua simpatia pelo regalismo, manifestado nas Reflexões,
e tornado doutrina de Estado a partir da entronização de D. José I e da prevalência
política do Marquês de Pombal. Porém, a sua profunda análise interior psicológica,
desconstruindo preconceitos tradicionais, não parece ter paradoxalmente afectado
as suas antigas convicções sociais, já que, independentemente da sua acirrada crítica
da nobreza, Matias Aires defende no seu testamento que os detentores do vínculo da quinta da
Agualva nunca pudessem casar senão com “pessoas conhecidamente nobres e que
tenham nobreza derivada de seus pais e avós; de sorte que ficarão excluídos
todos os administradores que casarem com filhos ou filhas, netos ou netas, bisnetos
ou bisnetas, de oficiais mecânicos e desta proibição vão compreendidos os filhos,
netos e bisnetos de mercadores, tendeiros de qualquer mercadoria, ainda que não
exercitem por si aqueles negócios, mas sim por seus caixeiros ou agentes”.20
Matias Aires
estatui-se, assim, como um filósofo inclassificável à luz das correntes da época,
nem escolástico nem “moderno”,21 nem “estrangeirado” nem castiço, nem empirista nem
liberal no campo política, muito menos racionalista segundo o optimismo gnoseológico
europeu da época. E inclassificável permanecerá, já que a sua obra não terá
continuidade na história do pensamento português dos século XIX e XX. O que da conturbada
época histórica em que Matias Aires viveu passou para a sua obra foi, indubitavelmente,
o novo espírito de laicização da sociedade e do Estado e consequente perda de
influência da moral católica, predominante em Portugal até ao reinado de D. João
V. De facto, a vaidade, em Matias Aires, não é reenviada nem para o leque maniqueísta
entre virtudes e vícios nem radicada no conflito entre Deus e o diabo pela posse
das acções humanas. Diferentemente, como escreve Jacinto do Prado Coelho, “a vaidade
(...) dimana dum impulso vital, de instintiva afirmação do indivíduo”,22 ou, como o
próprio Matias Aires esclarece: a imaginação
desperta e dá movimento à vaidade; por isso esta não é paixão do corpo mas da
alma; não é vício da vontade, mas do entendimento, pois depende do discurso.23
António Pedro
Mesquita, no interessantíssimo e perspicaz ensaio que escreveu sobre a vida e a
obra de Matias Aires, delimita com muita clareza o conceito de vaidade, combinando
diversos parágrafos independentes do livro maior de Matias Aires:
O que é, pois, a vaidade?
Desde logo, a vaidade é uma “paixão”
(&s. 2, 10, 14) ou um “afecto da alma” (& 32); é, para mais, um vício
(&s. 5, 9, 14, 77) e assemelha-se a uma “espécie de concupiscência” (&
67); e é, finalmente, como que uma forma de inveja (& 43).
Caracteriza-a um
apego ao que é vão, exterior e supérfluo (&s. 20, 48-50, 79) e surge como
um produto da opinião dos homens ((&s. 4, 25, 36, 38, 49, 83), pelo que
também, nesta acepção, como o contrário da natureza (&s. 8, 49, 68, 69,
83).
Mas acima de
tudo ela constitui um consolo (&s. 2 e também 37 e 64) ou mesmo a “consolação
universal” (& 84), enquanto contrapartida da vacuidade da vacuidade humana
(& 20) e consumação exterior do amor-próprio que a consciência de uma tal vacuidade
vem ferir ((& 10).
Por aqui se compreende o que a
vaidade procura.
Em primeiro lugar, ela procura a
estima e a admiração dos outros (&s. 4, 18, 19, 25, 29, 35, 46, 65, 68, 76, 81), o
respeito (&s. 34-35, 41) e a preeminência sobre os demais (&s. 2, 14).
Mas procura
também que falem de nós, combatendo pela lembrança a fugacidade da nossa
permanência na terra e transgredindo no desejo de fama e imortalidade a radical
impossibilidade de nos sobrevivermos para além do incontornável termo da morte
(&s. 42, 45, 46, 68).
Nesta medida,
porém, também aqui a vaidade procura acima de tudo um consolo (&s.
2, 37 e principalmente 84), isto é, um modo de resistir à absoluta precaridade
da existência humana e de mitigar e adormecer a consciência dessa mesma
precaridade, o que faz com sucesso sempre que sublima a insignificância do
homem na ilusória convicção de algum merecimento intrínseco.24
Neste sentido,
como pulsão interior expressa socialmente, como instinto vital, a vaidade comunga
de estatuto semelhante ao do amor, enquanto radicam ambos na natureza do homem,
isto é, são-lhe universalmente constitutivos: o amor como pulsão física do corpo
e a vaidade como pulsão da alma; o amor com o fito da união sexual e a vaidade com
a finalidade da instauração interior do respeito do sujeito por si próprio; o
amor prolongando a espécie ( a “humanidade”) e a vaidade, como funda
irredutibilidade antropológica, instaurando o nível propriamente social das
relações humanas. Assim, a sociedade evidencia-se, não propriamente como uma
feira de vaidades, mas como um teatro25 de vaidades pelo qual, cada um
firmando-se na representação social da sua vaidade, jogando o papel que por
condição ou fortuna a sociedade lhe ditou, torna esta uma espécie de segunda
natureza do homem. Deste modo, assumir a vaidade intrínseca (o amor-de-si, o respeito
por si próprio), constitui o prolongamento ou expressão do que de mais natural
o homem possui. Porém, no mesmo acto e no mesmo momento, deve o homem
consciencializar que, se o amor é uma força do corpo que exige natural consumação,
a vaidade, como força ou impulso da alma, apenas é natural enquantofundamento
antropológico da sociedade e não enquanto expressão institucional, temporal ou
histórica. Isto é, as formas sociais e institucionais por que a vaidade se manifesta
conjunturalmente, segundo as diferentes sociedades, são, todas elas meras ilusões
(o estatuto da nobreza, a proeminência política, a riqueza, ...), ou, como o
autor escreve:
Tudo no mundo
são sombras que passam; as que são maiores, e mais agigantadas, duram mais
horas, mas também se extinguem, e do mesmo modo que aquelas que apenas tiveram
de existência alguns instantes. O desejo nos finge mil objectos imortais, e
entre eles a fama é a que mais nos inclina a vaidade; sendo que o mesmo ar, que
lhe dilata os ecos, lhe confunde e apaga a voz. Nas coisas é trânsito, o que
nos parece permanência: a diversidade, que vemos na duração delas, é porque
umas gastam mais tempo em acabar que outras; de sorte que propriamente só
podemos dizer que as coisas estão acabando e que não que estão sendo.26
Não existe,
assim, escape para a vaidade e quanto maior é esta e mais correspondente a um
estatuto social elevado, maior é igualmente o grau de auto-contentamento
social, isto é, de vaidade. Desta teoria antropológica nasce a crítica de
Matias Aires à nobreza:
Era preciso, com
efeito, que muitas vaidades concorressem para poderem formar a vaidade da
Nobreza; era preciso que muitas vaidades se ajuntassem (todas subtis e
especulativas) para fazer que os homens cressem que os acidentes do tempo, da
fortuna e da desgraça se podiam de tal sorte infundir no sangue, que a um
constituíssem sangue nobre e a outro fizessem sangue vil. A Nobreza e a vileza
são substâncias incorpóreas, porque são vãs; e se é verdade que podem estar no
sangue, será talvez por algum modo intelectivo, imaterial e etéreo; mas parece
que nem assim podia ser, porque aquilo que é vão de nenhuma sorte existe. A
inexistência da Nobreza ainda é menos que a inexistência de uma sombra, porque esta
ao menos é um nada que se vê; a imaginação pode fingir uma quimera, porém
dar-lhe corpo não; pode imaginar a quimera da Nobreza, porém introduzi-las nas
veias nunca pode ser...27
Do mesmo modo, a História é
encarada, não como o tableau do teatro onde a vaidade se representa, mas
como o edifício total do teatro, dotado de inúmeras portas e atravessado de
inúmeros corredores, labirínticos corredores, expressão da “diversidade de opiniões”28 dos
historiadores que louvam a vaidade própria, a vaidade da “casa” de que estão
incumbidos de narrar vitórias e prodígios e, pela inveja (uma forma de
vaidade), de minorizar os feitos alheios:
A História é uma
das provas com que a vaidade alega e de que mais se serve na autenticidade da
Nobreza: prova incerta, duvidosa, fingida e também algumas vezes falsa: nela se
vêem muitos sucessos famosos, acções, combates, vitórias; muitos nomes a quem essas
mesmas acções enobreceram, ilustraram. Mas de quantas acções fará menção a história,
que jamais se viram? De quantos sucessos, que nunca foram? De quantos combates.
Que nunca se deram? De quantas vitórias, que nunca se alcançaram? E de quantos
nomes, que nunca houveram? Não é fácil que pelas narrações da história se possa
descobrir a verdade dos sucessos...29
Nunca será
excessivo o louvor feito ao notabilíssimo trabalho de António Pedro Mesquita na
ressurreição da obra de Matias Aires e no lucidíssimo comentário que tem vindo
a tecer sobre o pensamento deste filósofo. Porém, dificilmente podemos acompanhar
a interpretação de António Pedro Mesquita a partir da página 101 do seu livro
sobre a vida e obra de Matias Aires quando instaura a vaidade como “perversão originária
da natureza”, definição ou classificação deveras polémica. Com efeito, em Reflexões,,
a vaidade não parece possuir outro estatuto (aqui residindo toda a originalidade
do autor se tivermos em conta o seu tempo histórico) que – primeiro - o de conceito arqueológico de uma
antropologia da natureza humana enquanto instaurador de virtudes e
vícios, bens e males, acções boas e más, e – segundo e como consequência – criador,
enquanto efeito psicológico e social, da irrealidade ou artificialidade de toda
a vida humana em sociedade, estatuída como vão teatro de sombras. Neste
sentido, enquanto “princípio estruturante do homem”,30 a vaidade
prolonga naturalmente a natureza na sociedade, tanto pulsando para o bem
como para o mal, para a virtude como para o vício, para a glória como para a
indigência, constituindo-se como princípio de uma radical interioridade ética e
gnoseológica da existência humana, estatuindo-se não como uma perversidade
natural-social da natureza (que natureza seria esta?), mas simplesmente como
uma “segunda natureza” do homem, de carácter intrinsecamente relacional e
social. Deste modo, Matias Aires estaria em absoluto de acordo com a famosa
frase de Nietzsche segundo a qual “o sucesso santifica as intenções”, isto é, o
sucesso de uma acção, não deixando de ser constitutivamente ilusório, torna-a
virtuosa, concedendo-lhe fama, proveito e honra, enaltecendo-a na
conjunturalidade do tempo.
Diferentemente, a interpretação de António Pedro Mesquita atribui à vaidade o estatuto de pecado original da sociedade, quando a originalidade de Matias Aires consiste justamente em libertar a filosofia (e a sua filosofia) desta tradicional terminologia de origem teológica, desabsolutizando os conceitos de bem e de mal, contestando igualmente a divisão absoluta entre natureza e homem e corpo e alma, evidenciando a existência de um conceito (a vaidade) a todos os domínios comuns, seja em forma de amor, seja em forma de auto-respeito, seja em forma de vínculo social (a vaidade propriamente dita).
Diferentemente, a interpretação de António Pedro Mesquita atribui à vaidade o estatuto de pecado original da sociedade, quando a originalidade de Matias Aires consiste justamente em libertar a filosofia (e a sua filosofia) desta tradicional terminologia de origem teológica, desabsolutizando os conceitos de bem e de mal, contestando igualmente a divisão absoluta entre natureza e homem e corpo e alma, evidenciando a existência de um conceito (a vaidade) a todos os domínios comuns, seja em forma de amor, seja em forma de auto-respeito, seja em forma de vínculo social (a vaidade propriamente dita).
Carta sobre a
Fortuna é
um texto de data desconhecida, que tem acompanhado a publicação de Reflexões
sobre a Vaidade dos Homens desde 1778, mas cujo conteúdo filosófico
pressupõe a escrita anterior deste último e cujos indícios cronológicos pressupõem
o quase absoluto isolamento de Matias Aires na quinta da Agualva nos seus derradeiros anos
de vida. Nesta Carta, Matias Aires, reflectindo sobre a sua vida e a sua experiência,
parece atentar nos contornos conceptuais de uma espécie de ética da felicidade.
Considera a existência de três colunas pelas quais se concretiza a fortuna: o amor, a vaidade
e a esperança. O termo “fortuna” é entendido na Carta no seu sentido semântico
habitual, como “sorte” ou “destino”, e este último mais no sentido de “alcance
merecido”, de realização sucedida e justa, do que de “fatalidade”, embora, minoritária
e dubitativamente, este sentido esteja presente no parágrafo censurado pelo Santo
Ofício na primeira edição.31
Postulando
que a “a verdadeira felicidade há-de [deve] ser interior”,32 Matias Aires, de
acordo com a lição do seu livro maior, recusa substancializar a felicidade em
atributos exteriores e sociais, como a honra, a riqueza, a fama. Deste modo, a
felicidade evidencia-se como uma espécie de auto-contentamento e auto-satisfação
nascidos do respeito que a representação do sujeito possui de si mesmo “quando
não vem de uma falsa causa”.33 Porém, se a felicidade é interior, ela não pode estar
dependente da fortuna, já que os efeitos desta, merecidos ou imerecidos, justos
ou injustos, são dependentes da interacção social, a qual, como vimos, sendo
necessária como modo de sobrevivência, é igualmente intrinsecamente ilusória. É
neste sentido que se deve interpretar a frase emblemática de Matias Aires de
que “a fortuna é um encanto enganador”,34 frase que sintetiza em rigor a totalidade
da vida de seu pai.
Assim, alcançar e possuir a fortuna significa exacerbar hiperbolicamente a sua vaidade e o seu sentimento de felicidade exterior, desconhecendo que a verdadeira felicidade é interior e que tudo na sociedade são jogos teatrais de representação da vaidade; a fortuna que assim o faz sentir mais não é que autêntica expressão da ilusão humana ou, na terminologia metafórica de Matias Aires, é apenas a “sombra” menos escurecida da felicidade, mais turbando a acção humana do que serenando-a.
Assim, para atingir-se a verdadeira felicidade, aquela que não está sujeita à mudança de que toda a existência é cumulada,35 necessário seria estancar a corrente do “desejo [que] nos finge [simula, cria ilusoriamente] mil objectos imortais”,36 estancar a “constância no desejo” pelo qual ambicionamos exteriormente objecto para o amor, posse para a vaidade e prosperidade para a esperança. Deste modo, como “encanto enganador”, testemunhada socialmente, reproduzida geracionalmente, sempre presente na educação infantil, motor último da história de cada homem, que pela sua posse ou ausência estabelece o juízo final bom ou mau da sua vida, a fortuna delicia-se em atrair pelos seus cânticos as acções humanas. É neste sentido que é um “encanto”; e é também neste sentido que é um “encanto enganador”, porque ilusoriamente (mas não falsamente) cria os mesmos sentimentos de respeito e auto-satisfação que a verdadeira felicidade desperta. Falta-lhe, porém, a serenidade pertinente ao conceito desta última, já que quem é exteriormente feliz logo se angustia por manter ou fazer crescer as causas (riqueza, interesse, fama, honra pessoal, ...) da sua ilusória felicidade, entregando-se à perturbação mental. Como que o homem socialmente feliz é, metaforicamente, um avarento em constante inquietação pela posse e guarda do seu tesouro, grande ou pequeno. Todo o conteúdo filosófico de Carta sobre a Fortuna dirige-se contra esta forma ilusória de felicidade, propondo, em alternativa, de um modo biográfico, seguindo como uma parábola o exemplo vivido do autor, a desvinculação do corpo (o amor), da alma (a vaidade) e de ambas (a esperança) dos desejos sociais inerentes ao cumprimento da fortuna, ou seja, propõe uma desvinculação do “encanto enganador” da fortuna, que é o mesmo que dizer, nas palavras de Matias Aires, propõe o acto ético do “desengano”: “... milito nos campos do desengano, campos solitários ou menos frequentados, porém mais seguros”,37 ou, como à frente enuncia, embora a sua idade não seja muito avançada, intenta “adiantar o desengano, para que não seja a idade que por força me desengane”, 38 evidenciando-lhe pela morte a constante ilusão da felicidade social a que os homens tenazmente se prendem. Viver no “desengano” é, assim, repulsar voluntariamente, por um acto deliberado e auto-consciente, um acto ético, as três colunas da fortuna: o amor, a vaidade e a esperança. Como escreve Matias Aires:
Com o tempo perdi o amor, a vaidade e a esperança, estou pois sem esperança, sem vaidade e sem amor. Estes eram os fortes laços que me prendiam, já se quebraram; não sei verdadeiramente o que me prende. (...)
Assim, alcançar e possuir a fortuna significa exacerbar hiperbolicamente a sua vaidade e o seu sentimento de felicidade exterior, desconhecendo que a verdadeira felicidade é interior e que tudo na sociedade são jogos teatrais de representação da vaidade; a fortuna que assim o faz sentir mais não é que autêntica expressão da ilusão humana ou, na terminologia metafórica de Matias Aires, é apenas a “sombra” menos escurecida da felicidade, mais turbando a acção humana do que serenando-a.
Assim, para atingir-se a verdadeira felicidade, aquela que não está sujeita à mudança de que toda a existência é cumulada,35 necessário seria estancar a corrente do “desejo [que] nos finge [simula, cria ilusoriamente] mil objectos imortais”,36 estancar a “constância no desejo” pelo qual ambicionamos exteriormente objecto para o amor, posse para a vaidade e prosperidade para a esperança. Deste modo, como “encanto enganador”, testemunhada socialmente, reproduzida geracionalmente, sempre presente na educação infantil, motor último da história de cada homem, que pela sua posse ou ausência estabelece o juízo final bom ou mau da sua vida, a fortuna delicia-se em atrair pelos seus cânticos as acções humanas. É neste sentido que é um “encanto”; e é também neste sentido que é um “encanto enganador”, porque ilusoriamente (mas não falsamente) cria os mesmos sentimentos de respeito e auto-satisfação que a verdadeira felicidade desperta. Falta-lhe, porém, a serenidade pertinente ao conceito desta última, já que quem é exteriormente feliz logo se angustia por manter ou fazer crescer as causas (riqueza, interesse, fama, honra pessoal, ...) da sua ilusória felicidade, entregando-se à perturbação mental. Como que o homem socialmente feliz é, metaforicamente, um avarento em constante inquietação pela posse e guarda do seu tesouro, grande ou pequeno. Todo o conteúdo filosófico de Carta sobre a Fortuna dirige-se contra esta forma ilusória de felicidade, propondo, em alternativa, de um modo biográfico, seguindo como uma parábola o exemplo vivido do autor, a desvinculação do corpo (o amor), da alma (a vaidade) e de ambas (a esperança) dos desejos sociais inerentes ao cumprimento da fortuna, ou seja, propõe uma desvinculação do “encanto enganador” da fortuna, que é o mesmo que dizer, nas palavras de Matias Aires, propõe o acto ético do “desengano”: “... milito nos campos do desengano, campos solitários ou menos frequentados, porém mais seguros”,37 ou, como à frente enuncia, embora a sua idade não seja muito avançada, intenta “adiantar o desengano, para que não seja a idade que por força me desengane”, 38 evidenciando-lhe pela morte a constante ilusão da felicidade social a que os homens tenazmente se prendem. Viver no “desengano” é, assim, repulsar voluntariamente, por um acto deliberado e auto-consciente, um acto ético, as três colunas da fortuna: o amor, a vaidade e a esperança. Como escreve Matias Aires:
Com o tempo perdi o amor, a vaidade e a esperança, estou pois sem esperança, sem vaidade e sem amor. Estes eram os fortes laços que me prendiam, já se quebraram; não sei verdadeiramente o que me prende. (...)
Deixei os vícios
do amor, da vaidade e da esperança porque eles primeiro me deixaram; amigos
infiéis esquecidos do meu passado obséquio e lembrados da minha ineptidão presente:
foram meus no tempo alegre e já me desamparam neste tempo triste; injusta recompensa
de uma tirana sociedade. Quem dissera que havia de achar o amor ingrato, a vaidade
sem vigor e a esperança desanimada! Se estes vícios me deixaram, sendo meus, ou
sendo uma grande parte de mim mesmo, como pode a fortuna não deixar-me, não
havendo sido minha! Aqueles nasceram comigo e comigo se criaram, provindo da
minha natureza e consubstanciais a mim; e ainda sendo assim já se apartaram.39 A radicação do
amor, da vaidade e da esperança na naturalidade do desejo estatui-os justamente
como “consubstanciais” e, portanto, impossíveis de serem estancados física e
animicamente. Apenas uma “disposição do espírito”, isto é, o acto elementar da instauração
da ética, permite suplantar estes três “apetites” ou desejos da natureza humana,
abrindo um novo horizonte, o horizonte da verdadeira espiritualidade, que conduz
à felicidade interior.
Assim, em Carta
sobre a Fortuna, Matias Aires explicita biograficamente, segundo a tradição
do exemplum, o estatuto filosófico dos três actos éticos elementares
porque se cumpre a
felicidade interior contra o império da vaidade, a solidão consciente ou a interiorização,
procedendo à dissecação das motivações individuais e das tentações sociais que
alimentam a vaidade e contrariam a interiorização humana; do mesmo modo, esta
interiorização é postulada no horizonte antropológico-histórico concludente de
que tudo é ilusão e de que a acção mais benigna ou maligna igualmente de ilusão
não passa; contra o impulso físico do amor, a adesão à verdade, uma verdade
interior (“a verdade só está no interior”)40 coetânea da felicidade interior como
dois sentimentos-conceitos siameses enquadradores do todo da verdadeira vida humana;
assim, a verdade é buscada solitariamente e solitariamente conseguida, já que a
sua aparência é idêntica à sua essência:
Nenhum fingimento pôde agradar-me nunca, nem tive arte para fingir. Mostro-me como sou, e (parte censurada na edição de 1778: todo o artifício serviria mais para descobrir-me que para esconder-me. Parece que todos estão vendo como sou e) que ainda os meus mesmos pensamentos se estão deixando ver pela interposta e mal cerrada cortina do meu semblante; por isso, tudo quanto digo é o mesmo que tudo quanto penso; de sorte que para mim não reservo nada, como se em mim não houvesse parte que não fosse parte exterior, visível e conhecida; propendo para uma estupidez no excesso de verdade; e tudo o que não é excessivamente verdadeiro faz-me repugnância natural, como alguma coisa que fizesse arrepiar-me, causando cócega[s] insuportável; e assim sou vicioso no excesso de verdade, assim como outros o são no excesso de mentira isto não é nem nunca foi virtude, é temperamento, porque a verdade opera em mim como por um acto necessário por compleição, e não por consciência; por génio e não por escrúpulo; e com efeito amo a verdade porque o meu conceito me[a] representa mais bela do que tudo quanto há; e mais apetecível do que tudo quanto se apetece.41
Nenhum fingimento pôde agradar-me nunca, nem tive arte para fingir. Mostro-me como sou, e (parte censurada na edição de 1778: todo o artifício serviria mais para descobrir-me que para esconder-me. Parece que todos estão vendo como sou e) que ainda os meus mesmos pensamentos se estão deixando ver pela interposta e mal cerrada cortina do meu semblante; por isso, tudo quanto digo é o mesmo que tudo quanto penso; de sorte que para mim não reservo nada, como se em mim não houvesse parte que não fosse parte exterior, visível e conhecida; propendo para uma estupidez no excesso de verdade; e tudo o que não é excessivamente verdadeiro faz-me repugnância natural, como alguma coisa que fizesse arrepiar-me, causando cócega[s] insuportável; e assim sou vicioso no excesso de verdade, assim como outros o são no excesso de mentira isto não é nem nunca foi virtude, é temperamento, porque a verdade opera em mim como por um acto necessário por compleição, e não por consciência; por génio e não por escrúpulo; e com efeito amo a verdade porque o meu conceito me[a] representa mais bela do que tudo quanto há; e mais apetecível do que tudo quanto se apetece.41
Assim: A minha
atenção sempre se volta para a verdade como se esta fosse um instrumento que
tivesse força necessária para voltar-me, porque a verdade me move como se fosse
um artifício natural feito para mover-me; e quando a busco é com amorosa
indagação, e se consigo achá-la, fico com o mesmo contentamento daquele que
achou o amor perdido.42
3. - contra a
esperança, a aceitação, não resignada mas lúcida da morte, consciente de que na
vida tudo ela nivela, findando com as ilusões criadas pelo amor e, sobretudo,
pela vaidade: Os meus sentidos sempre guardam o uniforme, e estão indiferentes
assim para o desgosto como para a felicidade [social, exterior]. Considero que
estes dois extremos foram feitos igualmente para o homem. Daqui resulta que amo
a vida sem amor e sem ódio aborreço a morte, porque sei que uma e outra coisa
foram feitas para mim e para todos; uma não é mais natural do que a outra é.
Ambas se hão-de verificar infalivelmente: a dúvida não está no sucesso, mas na
hora em que há-de suceder.43
Assim, não
vencidos mas domados (talvez o conceito freudiano de “recalcado” aqui se possa
aplicar em perfeição), amor, vaidade e esperança, perturbados e perturbadores desejos
que “consubstancialmente” angustiam a existência humana na inquietação da sua
consumação física e social, dão origem à serenidade própria da uniformidade ou neutralidade
ética dos sentidos e dos sentimentos em que consiste a felicidade interior, patamar
ético elementar ou inicial de uma vida espiritual.
Miguel
Real
1 Violeta Crespo Figueiredo, “[Matias
Aires] O Homem e o seu Tempo”, in Matias Aires, Reflexões sobre
a Vaidade dos
Homens,
(pref. de António Pedro Mesquita; fixação do texto e notas de Violeta Crespo
Figueiredo e Jacinto do Prado
Coelho), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 255. É
sempre de aconselhar esta edição
face à anterior, de 1980, da mesma editora, por, primeiro, possuir um
prefácio de António Pedro
Mesquita, autor do único livro existente sobre a filosofia de Matias Aires;
segundo, o prefácio de Violeta
Crespo de Figueiredo, no início na edição de 1980, em “Apêndice” na
edição de 2005, ter sido
actualizado com sete acrescentos de grande importância, como a própria autora
refere na p. 240. Assim,
citaremos sempre a partir da edição de 2005. No entanto, qualquer uma das
edições portuguesas recentes é
superior à edição brasileira de 1942, organizada por Alceu Amoroso Lima,
como, para a edição de 1980,
refere com pormenor Henrique Barrilaro Ruas, “Matias Aires: um filósofo
reencontrado”, in Jornal de
Letras, Artes e Ideias, nº 9, 23 de Junho de 1981.
2 Alceu Amoroso Lima, “Introdução”,
in Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, São
Paulo, Ed. Martins Fontes, 1993,
p. v.
3 Sobre todos estes temas, cf.
Ernesto Enes, Um Paulista Insigne: Dr. Matias Aires Ramos da Silva de
Eça.
Contribuição para o estudo da sua vida e obra, Lisboa, Academia Portuguesa de
História, 1941.
Para um resumo da vida de Matias
Aires, cf. “Apêndice” citado de Violeta Crespo de Figueiredo.
4 Cf. Violeta Crespo de
Figueiredo, “Apêndice” cit., pp. 223 – 224.
5 Idem, ibidem, p. 226.
6 Sobre Teresa Margarida da Silva
e Orta, irmão de Matias Aires e primeira romancista portuguesa com o
pseudónimo de Dorothea Engrassia
Tavareda Dalmira, autora de Aventuras de Diófanes, cf. “Introdução”
de Maria de Santa-Cruz à edição
crítica de Teresa Margarida da Silva e Orta, Aventuras de Diófanes,
Lisboa, Ed. Caminho, 2002.
7 Do mesmo modo, Barbosa Machado
faz igualmente referência a outros livros que Matias Aires terá
escrito, embora estes nunca
tenham sido encontrados: Lettres Bhoémiennes e Philosophia Rationalis
et
via ad Campum
Sophiae. Para
além de Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, de Matias Aires apenas se
conhece Carta sobre a Fortuna,
que, desde 1778, é ditada em conjunto com as Reflexões, e que, por
alusões pessoais no seu conteúdo,
deverá ter sido escrito perto do final da vida do autor, e Problema de
Arquitectura
Civil,
escrito depois de 1759, segundo Violeta Crespo Figueiredo (Cf. “Apêndice”
cit., p.
231), que nunca lemos.
8 Violeta Crespo Figueiredo, “Apêndice”
cit., pp. 217 – 218.
9 Idem, ibidem, p. 218.
10 Idem, ibidem, p. 219.
11 Idem, ibidem.
12 Idem, ibidem, p. 220.
13 Sobre os diversos nomes que
Matias Aires vai usando ao longo da vida, cf. Violeta Crespo de
Figueiredo, “Apêndice” cit.,
p. 239. Segundo esta autora, Matias Aires teria ido buscar o apelido “Eça” à
“avó materna da sua denegada
noiva” (p. 239, n-r-pé)
14 Idem, ibidem, p. 228.
15 Idem, ibidem, p. 229.
16 Idem, ibidem, p. 228.
17 Os restos mortais de Matias
Aires e de sua família desapareceram da capela. Presume-se que tenham
sido enviados para a vala comum
aquando das diversas vendas a que a quinta foi sujeita ao longo do
século XIX. Paradoxalmente,
Violeta Crespo de Figueiredo informa (a partir de informação colhida no
livro de Anne de Stoop, Quintas
e Palácios dos Arredores de Lisboa, Barcelos, 1986, pp. 181 – 183) que
um dos proprietários da quinta
foram justamente os descendentes do barão da Ilha Grande. É natural que,
após o desentendimento entre as
duas famílias, com pleito em tribunal ao longo de vários anos, os
familiares do barão da Ilha
Grande não tivessem querido guardar na sua recém-adquirida capela os
despojos mortais de antigos “inimigos”.
No século XX, até à década de 70, quando o intenso processo de
urbanização se acelerou na
Agualva-Cacém, a quinta de Matias Aires era conhecida por “Quinta da
Fidalga”, nome por que hoje é
conhecido o bairro a que deu origem.
18 Matias Aires, “Carta sobre a
Fortuna”, in Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, ed. cit., p. 212.
19 António Braz Teixeira, “A
Filosofia Jurídica”, in História do Pensamento Filosófico Português, vol.
III, As Luzes, (dir. de
Pedro Calafate), Lisboa, Ed. Caminho, 2001, p. 64.
20 Apud Violeta Crespo
Figueiredo, “Apêndice” cit., p. 238.
21 Violeta Crespo Figueiredo, que
leu o livro O Problema da Arquitectura Civil, publicado em 1770 por
empenho do filho Manuel Inácio,
declara que Matias Aires ainda defende a teoria geocêntrica do universo
– Cf. Violeta Crespo Figueiredo, “Apêndice”
cit., p. 232.
22 Jacinto do Prado Coelho, “Reflexões
sobre as Reflexões”, in Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade
dos Homens, ed. cit., p.
261.
23 Matias Aires, Reflexões
sobre a Vaidade dos Homens, ed. cit., & 14.
24 António Pedro Mesquita,
Homem, Sociedade e Comunidade Política. O Pensamento Filosófico de
Matias Aires
(1705 – 1763), Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, pp. 76 – 77.
25 “Que são os homens mais do que
aparências de teatro? Tudo neles é representação, que a vaidade guia;
a fatal revolução do tempo e o
seu curso rápido, que coisa nenhuma pára, nem suspende, tudo arrasta, e
tudo leva consigo ao profundo de
uma eternidade. Neste abismo, donde tudo entra, e nada sai, se vão
precipitar todos os sucessos, e
com eles todos os Impérios. Os nossos antepassados já vieram, e já foram;
e nós daqui a pouco vamos ser
também antepassados dos que hão-de vir...”, Matias Aires, Reflexões sobre
a Vaidade dos
Homens,
ed. cit., & 27.
26 Idem, ibidem, & 29.
27 Idem, ibidem, &
140.
28 Idem, ibidem, &
149.
29 Idem, ibidem, &
144.
30 António Pedro Mesquita, op.
cit., p. 26.
31 Cf. Matias Aires, Carta
sobre a Fortuna, ed. cit., p. 199.
32 Idem, ibidem, p. 195.
33 Idem, ibidem, p. 196.
34 Idem, ibidem, p. 212.
35 “Bem sei que tudo no Mundo é
transitório; porém, entre as mesmas coisas que vão passando, algumas
passam mais depressa do que
outras: em umas há tempo de se verem, em outras não; e estas ao mesmo
tempo que aparecem, desaparecem:
a mesma vida é um verdadeiro trânsito, mas com certa e determinada
duração; compõe-se de um espaço
incerto; e a mesma incerteza do seu espaço é o que faz parecer durável;
porque o fim que se não vê, nem
se conhece, julgamos que está longe...”, idem, ibidem, pp. 201 – 202.
36 Matias Aires, Reflexões...,
ed. cit., & 29.
37 Matias Aires, Carta sobre a
Fortuna, ed. cit., p. 198.
38 Idem, ibidem, p. 208.
39 Idem, ibidem, pp. 198 e
200.
40 Idem, ibidem, p. 204.
41 Idem, ibidem, pp. 204 –
205.
42 Idem, ibidem, p. 206.
43 Idem, ibidem, pp. 210 –
211.
Fontanelas, 10 de Junho de 2006.
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