sábado, 22 de dezembro de 2012

A propósito da Senhora da Peninha

A propósito da Senhora da Peninha:

as imagens que gostam da sua penha*

por Heitor Baptista Pato
 
É bem conhecida a lenda – narrada primeiramente por Frei Agostinho de Santa Maria no Santuário Mariano e reportada ao tempo de D. João III – do achamento da imagem da Senhora da Peninha por uma jovem pastora muda, por seus pais e por alguns vizinhos. Miraculosamente descoberta “em huma rotura da penha” nas fragosidades que sobranceiramente assinalam o poderoso promontório da Roca, logo “a tomárão com reverencia, e a trouxerão para a Ermida de São Saturnino, que fica dalli não muito longe, e nella a collocárão com toda a veneração, e reverencia (…).
 Mas a Senhora que havia santificado o primeiro lugar, e o havia escolhido, para nelle ser venerada, deixando a Ermida de São Saturnino, se foy a buscar a sua penha. Tres vezes succedeo isto, e julgandose, que (…) a Senhora só aquelle lugar queria, tratárão de lhe fazer hua Ermidinha, ajustada com a probreza daquelles pobres Aldeões” (15, Tomo II, Livro I, Título XVI, p. 55). Assim se teria iniciado, em tempos de D. João III, o culto mariano na ponta terminal da serra de Sintra, nesse finis terrae do extremo ocidental da Roca já anteriormente cristianizado pela erecção no séc. XII de uma ermida dedicada a São Saturnino.
O facto de uma imagem aparecida se “recusar” a ser colocada noutro local que não o do seu achamento é muito comum neste tipo de lendas populares, estando presente em centenas de narrativas e denotando em geral a reivindicação da imagem sagrada por parte do povo, em oposição à hierarquia institucional, ou noutros casos uma história de antigas rivalidades entre povoações. Em ambas as circunstâncias reconhece-se e reivindica-se como divino o local do achamento através de manifestações que denunciam por si mesmas esse carácter sobrenatural, pois que se trata de um objecto inanimado que se apresenta portador de vontade… mesmo contra a vontade da comunidade.
Pierre Sanchis evidenciou que o santo ou a divindade manifestam frequentemente “a vontade de ser de um lugar e de uma comunidade particular, graças às circunstâncias que rodearam a aparição da sua imagem” (14, p. 45); e por isso essa imagem resiste às tentativas de trasladação, regressando repetidamente ao local que escolhera para a sua hierofania, fazendo-se por exemplo demasiadamente pesada para ser trasladada. Pouco após o povoamento da ilha Terceira dos Açores, nas primeiras décadas de 1500, a Virgem foi vista pairando sobre as águas da Ribeira das Sete (Santa Bárbara), anunciando que ali próximo apareceria uma sua imagem; ao despedir-se, deixou gravada na rocha basáltica a impressão de um pé (pezinho de Nossa Senhora). A imagem surgiria de facto numa furna na Lapinha, junto ao mar; mas quando as populações a instalaram na igreja paroquial desapareceu repetidamente até que, fazendo-se subitamente pesada, não mais a puderam deslocar do seu local preferido; e aí lhe ergueram uma ermida consagrada à Senhora da Ajuda (3A, p. 126). Também a imagem do Senhor Jesus do Carvalhal (Óbidos), que se venera num santuário edificado após o terramoto de 1755 sobre as ruínas duma primitiva ermida dedicada a São Pedro de Finis Terra e a que se organizam círios populares, fora descoberta por um pescador no mar de Peniche, a quem dissera “leva-me até poderes”; e quando chegou à ermida de São Pedro tornou-se a imagem tão pesada que não pode prosseguir. Ainda em data tão recente como 1910 se conta que ao tentarem levar para a igreja paroquial a imagem da Senhora da Boa Morte que o Rei D. José oferecera ao convento do Louriçal (Coimbra) ela se fizera tão pesada que foi necessário espicaçar violentamente os bois que a transportavam.
Noutras ocorrências são animais que descobrem a imagem ou que, transportando-a, se recusam a andar. A imagem da Senhora da Piedade que se venera na Merceana (Alenquer) foi achada no tronco de uma carvalheira por um boi chamado Marciano, que se afastava da manada e se colocava em adoração frente à árvore; aí foi construída uma ermida em 1305 (15, Tomo II, Livro I, Tít. XXVI, p. 326). Para Cernache (Coimbra) foi transportada numa mula a imagem trecentista da Senhora dos Milagres, que saíra de Lisboa a caminho de Coimbra; ao chegar àquela povoação, a mula parou, recusando-se a andar, e “por mais diligencias, que se fizerão, a não pudérão mover, a que desse mais hum passo”, conta também Frei Agostinho de Santa Maria. Em Pinheiro Grande (Chamusca) era uma junta de bois que recusava avançar e se ajoelhava; escavando-se nesse lugar, encontrou-se a imagem de Santa Maria, que ficara soterrada aquando de uma violenta cheia do Tejo no séc. XVI. No santuário barroco da Senhora d’Aires (Viana do Alentejo), cuja primeira edificação remonta ao séc. XVI,  diz-se que todas as noites os bois saíam misteriosamente do estábulo para pastar, mas que na manhã seguinte estavam de novo lá dentro, apesar de a porta permanecer fechada; a Virgem manifestou-se em sonhos ao lavrador Martim Vaqueiro e explicou-lhe ser ela quem lhes abria a porta, querendo que ali lhe edificassem um templo. E também em Leiria, antes de o santuário do Senhor Jesus dos Milagres ter sido edificado, os gados das charnecas vizinhas formavam em círculo ao redor da cruz e do painel pintado erguidos em 1730 no próprio local do milagre concedido ao entrevado Manuel Francisco Maio.

Iniciativa própria e discricionária

A divindade manifesta-se com iniciativa própria e discricionária, misteriosa e incompreensível, não de acordo com as conveniências dos homens; é por essa razão superior que a “santa” foge para o local que mais lhe agrada. A história é de tal modo comum em todo o País que chega a haver quem dela se “aproveite”: uma lenda recolhida em Caféde (Castelo Branco) afirma que a capela da Senhora de Valverde fora em tempos edificada noutro local; ora, os povos de Juncal e de Freixal do Campo, querendo que uma nova ermida fosse construída mais perto das suas povoações, iam roubar a imagem e colocavam-na “na toca de uma pedra de granito, que ainda hoje se encontra atrás do altar na actual capela, dizendo que assim indicava a Senhora o seu desejo de ali ficar… (12, p. 10).
Nalgumas situações a imagem da Senhora limita-se a desaparecer temporariamente: em tempos de D. Sancho I, pelo ano de 1185, de um naufrágio ocorrido nas praias da Vagueira (Aveiro) salvou-se uma efígie da Virgem, que se guardou num arbusto próximo; avisado o pároco da Esgueira, visitou este o local, mas não a encontrou; e foi o próprio rei que, por ela avisado através de sonhos em Viseu, ali se deslocou, descobriu a imagem e mandou edificar uma ermida e uma torre de protecção contra os piratas, embora uma outra versão da história afirme que o local da imagem teria sido revelado em sonhos a um lavrador corcunda, que construíra a primitiva igreja (5, p. 48). Menos frequentemente, a Senhora parece arrepender-se de se ter feito visível e opta por desaparecer definitivamente: conta Frei Agostinho de Santa Maria que em Matacães (Torres Vedras) aparecera pelo ano de 1500 uma sua imagem numa oliveira, desaparecendo quando a população quis levá-la para a igreja de S. Miguel de Torres Vedras; por dez vezes tentou o pároco realizar a trasladação, embora sem êxito, até que finalmente convencida a população lhe edificaram uma capela no lugar do achamento; todavia, a Senhora da Oliveira desapareceu de vez e foram assim obrigados a mandar esculpir uma outra imagem de pedra para colocarem no altar.
Muito raramente, é a própria pedra em que a Senhora se mostra que foge: em Chãos, nos Prazeres de Aljubarrota (Alcobaça), onde a Virgem das Areias apareceu a uma mulher que havia perdido as chaves de casa e receava ser abusada pelo marido, mandou pelos anos de 1630 o bispo de Leiria levar o penedo em que a Senhora se sentara para Aljubarrota, “tendo tudo por patranha, e antojo da mulher”, pois que os devotos “delle raspavaõ, e tiravão alguas areas, com as quaes bebidas saravão das febres, e de outras muytas enfermidades”; tendo o penedo regressado ao seu local próprio, “mandou-o buscar outra vez , (…) e o mandou pôr junto à sua cama aonde dormia”, mas de noite tornou a desaparecer para voltar a Chãos (15, Tomo III, Livro III, Tít. X, p. 314).
Noutras circunstâncias são os materiais de construção que desaparecem ou o conjunto já edificado que surge destruído do dia para a noite, como na lenda da Senhora da Benedita (Alcobaça), datada do séc. XIV/XV: todas as manhãs apareciam as paredes aluídas e erguidas noutro local (onde está hoje a capela) e aumentadas sempre de mais um cunhal (6, p. 300). Aqui chegou a Virgem a matar e a ressuscitar um boi, ou duas vacas segundo outras versões; e para dar indicação segura da sua vontade deixou mesmo “estampadas três pegadas; se bem que a incuria daquelles homens, por não fazerem caso desta maravilha, a deixaram cobrir de terra, segundo esclarece Frei Agostinho de Santa Maria (15, Tomo II, Livro I, Tít. XVIX, p. 198). Note-se entre parêntesis que a ressurreição de bovinos tem paralelos noutros casos: também em Brotas (Mora) a Senhora ressuscitou uma vaca, depois de talhar no osso de uma das pernas do animal a sua própria imagem, que na realidade é de marfim. O modelo inspirador parece ser a lenda medieval de Santa Maria de Guadalupe (Cáceres, Espanha), em que a Virgem ressuscitou não apenas uma vaca encontrada morta pelo pastor Gil Cordero que descobrira a imagem, mas igualmente o filho do guardador de gado. Bernard d’Angers refere-se a animais ressuscitados por Santa Fé no seu santuário francês de Conques (Liber Miracolum sanctae Fidis) e escreve entre 1013-1020: “Por um maravilhoso efeito do soberano poder de Deus, santa Fé ressuscitou animais (…) Leitores, não evidenciem uma extrema surpresa na leitura deste milagre (…) Será portanto inesperado que o Criador, cuja bondade é infinita, testemunhe condescendência relativamente à obra das suas mãos, já que está escrito: Senhor, espalhareis as vossas benfeitorias sobre os homens e os animais?” (10, p. 33).
Casos há em que são relíquias a regressar ao local preferido. Na região de Belver, no concelho de Gavião (Portalegre), ainda hoje o povo conta a história das sagradas recordações que haveriam sido trazidas da Palestina pelos monges hospitalários de São João de Jerusalém, a quem D. Sancho I confiara o encargo de edificar o altaneiro castelo. As relíquias foram conservadas em 24 relicários abertos num belíssimo retábulo em talha quinhentista na capela de São Brás, no interior do recinto muralhado, oferecido pelo príncipe D. Luís, filho de D. Manuel I. Diz a lenda popular que teriam sido levadas para Lisboa, mas que logo haviam desaparecido e subido o Tejo até Belver, numa embarcação misteriosamente iluminada e acompanhada por música celestial. Não conseguindo puxar o barco até à margem, a população recorrera aos préstimos do pároco local; organizada uma procissão, viram então a embarcação deslocar-se sozinha, assim recuperando o cofre de madeira, forrado a seda vermelha e com aplicações de prata, que guardava as santas memórias. Transportadas para a igreja matriz, ali se conservam ainda hoje, sendo expostas unicamente no penúltimo domingo de Agosto.
Mencione-se ainda a lenda da fundação do mosteiro cirsterciense de Santa Maria de Alcobaça: de acordo com Frei Bernardo de Brito (2, Livro III, Cap. XXI, p. 169), D. Afonso Henriques determinara primeiramente construí-lo no lugar da Chaqueda ou Chiqueda; porém, durante a noite, desapareceram misteriosamente as “cordas e medidas, que os Monges trazião” para se abrirem os caboucos, indo aparecer no dia seguinte na zona de confluência dos rios Alcoa e Baça onde se vieram a lançar efectivamente as fundações da abadia, “armadas com tam boa ordem e concerto, como se as pusera algu official primo”;  “mandando alimpar o sitio de todo genero de mato”, foi o rei o primeiro a iniciar a construção “com hua enxada nas mãos”. A lenda da fundação do mosteiro, bem como a conquista de Santarém, é minuciosamente contada por aquele historiador alcobacense na sua Crónica de Cister e está narrada nos painéis azulejares setecentistas que forram a Sala dos Reis do convento: num desses painéis descreve-se a demarcação do terreno onde D. Afonso Henriques mandou construir a abadia, repetindo na terra a medição que os anjos haviam feito no céu.
De acordo com a pia lenda, São Bernardo fora avisado em Claraval da vitória de Afonso Henriques em Santarém, em místico transe que passou em “suspiros afervoradissimos, mais do costumado, como aquelle que com os olhos do espiritu estava vedo todo o processo do combate, que se entam começava” (2, Livro III, Cap. XX, p. 166vº). Também relativamente à edificação do mosteiro de São João de Tarouca, no séc. XII, se referem circunstâncias similares: segundo Frei António Brandão (1, Livro X, Cap. IX, p. 106), o convento teria sido fundado por ordem de São Bernardo que, em “oração ferverosa”, lhe viu aparecer São João Baptista “e o moveo da parte de Deos a mandar Monges de sua casa ao Reyno de Portugal a fundar uma Abbadia, e sem limitar lugar certo, o assegurou, que o Senhor o manifestaria”; os monges de Claraval procuraram um ermitão junto a Lamego, João Cirita, e aí fundaram uma primeira ermida, que devido aos sinais do céu mudaram para a sua localização definitiva: “e fundàraõ hua Ermida, que depoys mudàraõ para o lùgar, onde hoje se vè o Mosteyro de Saõ Joaõ de Tarouca, por occasiaõ de huas luzes que por algum tempo viraõ naquelle sitio”. Frei Bernardo de Brito (2, Parte I, Livro II, Cap. III, p. 61) especifica melhor esses sinais: “hum resplandor a modo de rayo, que decendo do Ceo, se deteve no ar muy perto da terra, dando claridade a todas as serras e valles em redor”.
Saliente-se, a propósito destes episódios, o acontecido com a edificação por Constantino da nova cidade-capital de Constantinopla ou Nova Roma, entre os anos de 326 e 330 d. C. Descreve o historiador Sozomeno na sua Historia Ecclesiastica (II, 3), redigida entre 440 e 443, que o imperador iniciara a construção da nova capital aos pés de Tróia, no Helesponto, mas que Deus lhe aparecera “de noite e o mandou procurar outro sítio para a cidade. Conduzido pela mão divina, chegou a Bizâncio na Trácia (…) e aqui desejou construir a sua cidade e torná-la digna do nome de Constantino. Em obediência às ordens de Deus, alargou portanto a cidade até então chamada Bizâncio (…)”. Por seu turno, o historiador Philostorgius na Historia Ecclesiastica, que apenas nos chegou epitomizada por Photius (Livro II, Cap. 9), esclarece que “quando foi marcar o perímetro da cidade caminhou ao longo dele com uma lança na mão”; e quando “os seus servidores pensaram que já tinha medido uma área demasiadamente larga, um deles chegou-se junto dele e perguntou-lhe ‘Até onde, ó Príncipe?’. O imperador respondeu ‘Até que aquele que vai à minha frente pare’; e por esta resposta claramente manifestou que algum poder dos céus o estava conduzindo e ensinando-lhe o que fazer”.
Normalmente, a Virgem ou o santo limitam-se a evidenciar pelos seus actos o desejo de permanecer no local onde apareceram ou foram achados, vinculando-se assim a essa comunidade. Por vezes irrita-se com pormenores pouco previsíveis: o São Bento de Cossourado, em Paredes de Coura, voa milagrosamente para um carvalho vizinho sempre que a porta da capela é reconstruída (14, nota 112, p. 223). Mais raro é anunciar por escrito essa vontade, como aconteceu em Ovar: quando os vareiros encontraram a imagem da Senhora da Graça num enorme penedo, nos inícios do séc. XV, depararam aos seus pés com uma inscrição em que se ordenava a edificação de uma capela naquele lugar, prometendo em troca livrar a população de pestes.

As lendas dos sete irmãos e a geomancia

Estas tradições, repito, contribuíam para reforçar a ideia de que eram as entidades sobrenaturais quem escolhia o seu próprio território de culto, mediante uma hierofania independente da vontade dos homens e afirmando assim a sua soberania superior ou demonstração de poder primacial: ao homem não “compete escolher o terreno sacro mas tão somente descobri-lo através de sinais ou revelações superiores e aceitá-lo” (13, p. 166), reconhecê-lo e a ele se vincular através da erecção de uma estrutura de culto.
Na serra de São Macário, a capela a ele dedicada e a capela próxima de Santa Maria Madalena teriam sido destruídas por um incêndio, tendo as populações decidido erguer uma nova ermida comum aos dois santos na Cabeçada; porém, todas as noites as ferramentas desapareciam, sendo encontradas pela manhã junto à primitiva capela do santo, porque Macário não queria deixar de ver os seus seis irmãos (Senhora da Nazaré em Palhais, Santa Ana na Cumeada, Senhora dos Remédios na Sertã, Senhora da Confiança em Pedrógão Pequeno, Senhora da Graça na povoação da Graça e São Neutel em Figueiró dos Vinhos). As lendas dos “sete irmãos” (ou irmãs) parecem ter o seu protótipo longínquo nos sete irmãos macabeus martirizados com sua mãe (II Macabeus, 7:1-42): o mesmo motivo está por exemplo presente na hagiografia de Santa Felicidade, martirizada no séc. II com os seus sete filhos, ou no martírio dos sete irmãos de Gafsa (Tunísia), no séc. V. Em Portugal, quando as legiões do imperador Trajano passaram pela zona de Lamego, um dos chefes militares raptou uma jovem no castro de São Domingos, na Queimada (Armamar), cuja honra foi defendida pelos seus sete irmãos; martirizados por degolação, todos têm a sua ermida própria.
Noutros casos, a atribuição do “parentesco” refere-se apenas à proximidade geográfica de várias ermidas, avistáveis num mesmo raio visual, como no já mencionado caso da capela de São Macário e dos seus “irmãos” e “irmãs”. Também nas proximidades das Portas de Ródão, junto ao penhasco da Beira ou penhasco beirão, existe a cadeira de Nossa Senhora onde ela namorava com São Simão; conhecida sob a invocação de Nossa Senhora do Castelo, era filha de Sant’Ana e irmã das Senhoras dos Remédios (Gardete), da Piedade (Alvaiade), da Alagada (Vila Velha de Ródão), das Dores (Fratel), das Necessidades (Comenda) e do Rosário (Fratel), que “se avistam umas às outras”. Igualmente a Senhora da Peninha tem sete irmãs, por isso quis ir para o alto do penhasco, porque aí avistava as sete irmãs que são: a Senhora da Atalaia, a Senhora da Pena, a Senhora da Penha de França [Quinta da Arriaga, nos arredores de Almoçageme], Santa Eufémia, Santa Quitéria de Meca [Guia, Cascais] e a Senhora do Cabo” (4, p. 36).
Exemplar é a história que se conta em Rendufe sobre Santo Estêvão, a Senhora da Abadia e a Senhora da Peneda, que ao subirem à serra de Arga escolheram através de uma prática geomântica o local onde cada um deveria ficar, atirando ao ar as suas bengalas. A de Santo Estêvão caiu no Labrujó, embora o santo tenha mais tarde fugido para o lugar de Lisoiros, em Paredes de Coura, onde lhe construíram uma capela (mas garantindo aos de Labrujó que lhes satisfaria todos os pedidos). A da Senhora da Abadia caiu num monte na freguesia do Bárrio, onde lhe edificaram uma capela e ainda hoje a veneram a 15 de Agosto. A da Senhora da Peneda foi cair bastante longe, junto a um enorme penedo num dos cumes mais altos de Labrujó; mas neste caso a Senhora, aparentemente insatisfeita com o sítio, voltou a atirar a bengala, acertando então no lugar em que lhe edificaram o santuário da Gavieira, em Arcos de Valdevez, onde em Setembro lhe promovem uma romaria que atrai milhares de festeiros. As gentes do Labrujó, no entanto, assinalaram o local onde a bengala caíra da primeira vez marcando o penedo com uma cruz pintada a vermelho, precisamente chamada a cruz vermelha. A lenda tem outras modalidades, baseadas na história de Santa Liberata, uma das mais conhecidas do Noroeste Peninsular. Na sua versão valenciana (17), Liberata nascera em Baiona, no ano de 119, filha do governador romano da Galiza e da Lusitânia. Num único parto, teve seis filhas (que viriam a ser as Senhoras de Mosteiró, do Faro, da Peneda, da Pena, da Bonança e dos Remédios) e um filho (São Tiago). Foi São Tiago que lançou a sua bengala ao ar para determinar o seu destino e o das irmãs: para a Senhora de Mosteiró a bengala caiu em Cerdal, para a do Faro no topo do monte em Ganfei, para a da Peneda na serra do mesmo nome, para a da Pena em Paredes de Coura, para a da Bonança em Vila Praia de Âncora e para a dos Remédios em Sanfins; para o próprio São Tiago, a bengala determinou-lhe Compostela como destino.
O mesmo mecanismo utilizou São Silvestre, segundo uma lenda medieval de Cardielos e Serraleis (Viana do Castelo): lançando o seu cajado para a margem direita do rio Lima, foi ele cair no alto do monte onde se edificou a capela, a cuja construção assistiu sentado na cadeira do santo, um penedo assim chamado por apresentar uma grande cavidade talhada naturalmente. Também quando a Senhora apareceu em 1603 à jovem muda Catarina em Sandim da Serra (Torre de Moncorvo), indicou-lhe no chão o desenho da capela que queria construída (7, p. 209). Explicitamente evocadora de práticas geomânticas é a descrição que Diogo Pereira Sotto Mayor nos faz em 1619 da fundação do convento quinhentista de São Bernardo em Portalegre, que o bispo D. Jorge de Melo quisera edificar sobre as ruínas da cidade romana de Ammaia; “mas tomando parecer com alguns físicos e matemáticos, e tomando o clima do sítio e o planeta que sobre ela reina, acharam que era lugar muito doentio e que passariam ali as religiosas muito trabalho” (11, p. 111). Do mesmo modo teria D. Gualdim Pais edificado em 1160 o castelo templário de Tomar, em substituição da velha fortificação de Ceras, sorteando a respectiva localização por três montes: segundo testemunho de Domingos Paes Roussado na inquirição de 1317 mandada fazer por D. Dinis, “lançadas sortes três vezes caíra a sorte naquele monte onde agora se vê o Castelo de Tomar e que então se acordaram que povoassem naquele monte” (9, p. 175).

Uma tradição com ilustres paralelos

A propósito das Senhoras que fogem para o local que elas próprias escolheram, Manuel Grandra salienta os paralelos com o “episódio da Eneida (II, 172-174), onde se descreve o desagrado e a ira do Paládio de Pérgamo por ter sido retirado do seu templo, ou ao que Varrão (De ling. lat., V, p. 144) refere acerca dos Penates que, quando transportados para Lavínia, voltaram para o seu domicílio original” (8, p. 19).
Na verdade, a estátua de madeira de Pallas Atena (Palladion) manifestou com “prodígios não duvidosos” a sua aversão quando Ulisses e Diomedes a retiraram do seu templo em Tróia, tendo mais tarde, segundo uma de várias tradições, sido levada por Eneias para Roma: diz Vergílio na Eneida que dos olhos despediram-se chispas de fogo, dos membros escorreu suor salgado e por três vezes se levantou sózinha do chão, “brandindo a lança e agitando o hórrido escudo”. Também os Penates que haviam sido trasladados de Tróia para a cidade de Lavinium por Eneias recusaram mudar-se para Alba Longa quando esta cidade foi por sua vez fundada pelo filho de Eneias, Ascânio, e reapareceram miraculosamente em Lavinium por duas vezes; segundo Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II, 67), apesar de as portas do templo de Alba Longa estarem “muito cuidadosamente fechadas e de as paredes do recinto e o tecto do templo não terem sofrido estragos, as estátuas mudaram as suas posições e foram encontradas nos antigos pedestais” em Lavinium. O acordo prévio da deusa era igualmente essencial relativamente a Cibele: em Roma, aquando do cortejo processional do seu banho (lavatio), que se realizava a 27 de Março, a sua imagem de prata com uma pedra negra a servir de rosto deixava o Palatino em direcção ao Almo, um afluente do Tibre, no qual era mergulhada e lavada com cinza; antes de regressar a Roma, porém, era-lhe pedido o seu consentimento, e só em caso de resposta afirmativa assim se procedia.
Ainda mais explícito é o relatado na Historia Britonum (Cap. LXXIII), redigida circa 830, tradicionalmente atribuída ao monge galês Ennius e que forneceu um contributo fundamental para a formação das lendas relativas ao rei Artur, sendo o primeiro texto que  o apresenta como figura histórica: no País de Gales, no cairn de Cabal, podia ver-se a impressão das patas de Cabal, um dos cães da matilha de Artur de Camelot; inúmeros visitantes tentaram levar a pedra, mas só conseguiam conservá-la durante um dia e uma noite, já que que na manhã seguinte ela regressava inevitavelmente ao seu lugar. Por seu turno, Plínio conta na História Natural (XXXVI, 23) que na cidade de Cyzicus havia uma “pedra fugitiva” (lapis fugitivus) que fora usada pelos Argonautas como âncora, mas porque “repetidamente levantara voo do Prytanaeum, o local assim chamado onde era guardada, foi presa à terra com chumbo”; noutro local (id., 29) afirma: “entre os prodígios que aconteceram, encontro referências feitas a mós de moinho que se moveram por si próprias”.
Saliente-se, por último, que a circunstância de santas imagens terem sido escondidas – e mais tarde achadas – anda normalmente atribuída ao domínio muçulmano da Península, que terá levado a que os cristãos as guardassem em locais isolados para evitarem a sua profanação, especialmente durante as perseguições do omíada Abderramão II no séc. IX e, mais tarde, das dinastias almorávida e almóada. A mesma determinação haveria sido já tomada anteriormente, aquando da invasão dos alanos, suevos e outros povos bárbaros, nos inícios do séc. V, afirmando a tradição que o arcebispo de Braga mandara esconder todas as relíquias de santos por ocasião do mítico concílio celebrado naquela cidade em 411. O I Concílio de Braga decorreu de facto entre 561 e 563, presidido por São Martinho de Dume, bispo de Braga; o falso I Concílio, convocado por um inexistente arcebispo Pancraciano e cujas actas foram forjadas no mosteiro de Alcobaça e publicadas por Frei Bernardo de Brito na sua Monarquia Lusitana (3, II Parte, Livro VI, Cap. II, p. 198), referia nomeadamente as relíquias de S. Pedro de Rates, que era necessário acautelar dado que “as gentes barbaras destruem toda Espanha, assolaõ os Templos, e poem à espada os servos de Jesu Christo, profanão as memorias dos Santos, seus ossos, Templos, e sepulturas”. Teria sido decidido que os bispos regressassem aos seus domínios e que aí  escondessem “os corpos dos Santos em lugares decentes, e mandenos hua relação dos luygares e covas onde os depositarem, porque senão venhaõ a esquecer pelo discurso do tempo”.
Contestando de algum modo esta explicação tradicional para o aparecimento de santas imagens, outros investigadores preferem recordar que eram na Idade Média numerosos os eremitas que se retiravam para longe do mundo e que, para se sustentarem, apresentavam aos passantes uma imagem, pedindo-lhes o óbolo; com a sua morte, as imagens teriam ficado ali esquecidas para virem mais tarde a ser encontradas pelos populares.



BIBLIOGRAFIA

(1) BRANDÃO, Doutor Frei António – Terceira Parte da Monarchya Lusitana, Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1632

(2) BRITO, Frei Bernardo de – Primeyra parte da Chronica de Cister : onde se contam as cousas principais desta religiam com muytas antiguidades, assi do Reyno de Portugal como de outros muytos da christandade, Lisboa: Pedro Craesbeek, 1602

(3) BRITO, Frei Bernardo de – Monarchia Lusytana, Lisboa: Pedro Craesbeeck, 1632 (1ª ed. 1597-1609)

(3A) BRUM, Ângela Furtado – Açores - Lendas e outras histórias, Ponta Delgada: Ribeiro & Caravana

Editores, 2ª ed., 1999 (1ª ed. 1994)

(4) CAETANO, Maria Teresa – Contributos para o estudo das lendas de Nossa Senhora da Peninha, in Etnografia da Região Saloia – A diversidade do quotidiano, Sintra: Instituto de Sintra, 1999, Vol. II

(5) CARVALHAIS, Manuel António – Santa Maria de Vagos, Fábrica da Igreja Paroquial da Freguesia de Vagos, 2000

(6) FELGUEIRAS, Guilherme – O Estudo da Literatura Popular e das Tradições Orais Estremenhas - Lendas da Fundação da Igreja da Benedita., in Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa, série III, nºs 67/68, 1967

(7) FERREIRA, Seomara da Veiga – As aparições em Portugal dos séculos XIV a XX. Os emissários do desconhecido., Lisboa: Relógio d’Água, 1985

(8) GANDRA, Manuel J. – Anotações para a devolução do compasso aos olhos, in Da Vida, da Morte e do Além: aspectos do Sagrado na região de Mafra, Mafra: Câmara Municipal de Mafra, 1996

(9) GANDRA, Manuel J. – Os Templários, in Portugal Misterioso, Lisboa: Selecções do Reader’s Digest, 1999

(10) Livre des miracles de sainte Foy. Traduction des textes. Liber Miracolum sanctae Fidis, Sélestat: Les Amis de la Bibliothèque de Sélestat, 1994

(11) MAYOR, Diogo Pereira Sotto – Tratado da Cidade de Portalegre, ed. Leonel Cardoso Martins, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Câmara Municipal de Portalegre, 1984

(12) MOURA, José Carlos Duarte – Contos, Mitos e Lendas da Beira, Coimbra, 1996

(13) PENTEADO, Pedro – Santuários, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, dir. Carlos Moreira Azevedo, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001

(14) SANCHIS, Pierre – Arraial: Festa de um Povo - As Romarias Portuguesas, Lisboa: D. Quixote, 1983

(15) SANTA MARIA, Frei Agostinho de – Santuário Mariano, E Historia das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, etc., Lisboa: Of. António Pedrozo Galrão, 1707/1723

(16) TURCAN, Robert – Les cultes orientaux dans le monde romain, Paris: Les Belles Lettres, 2004

(17) Xornal Galicia, 3 de Junho de 2008






* Retomo neste artigo elementos de Profecias, mitos e providencialismos: o Santuário do Extremo Ocidente (a Serra de Sintra, São Saturnino e a Senhora da Peninha), presentemente a aguardar publicação.
 

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