III ENCONTRO DE
HISTÓRIA DE SINTRA
“A MORTE EM
SINTRA NOS PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX”
Algumas
considerações prévias:
A escolha do
tema partiu da convicção da importância da Morte como “revelador sensível"
de qualquer tipo de sociedade. Através do seu estudo, procurámos detectar os
valores, as expressões, os comportamentos, as emoções e as atitudes, que norteavam
ou marcavam a sociedade da região de Lisboa nos princípios do século XX, designadamente
em Sintra, com a especificidade possível.
A consciência da
inevitabilidade da morte e da destruição que lhe está inerente,
independentemente das crenças e/ou das esperanças de que o indivíduo é portador,
constituirá porventura uma das confrontações que mais o têm inquietado.
Nunca será
possível apreender profundamente tão complexo processo, mas podemos conhecê-lo
nos seus aspectos exteriores, já que a Morte, enquanto fenómeno social, revela
a maneira como os vivos a concebem, a representam e a vivem.
No período em
estudo, o historiador francês Michel Vovelle considerava que as representações
colectivas à volta da morte, no Ocidente, poderiam sintetizar-se, em termos
extremos, do seguinte modo: a burguesia dividia-se entre um revivalismo religioso,
muito marcado pela tentativa de renovação da Igreja no fim do século XIX; pelo
cientismo, que procurava estabelecer uma nova pedagogia para o bem morrer; e pelo
Espiritismo, que defendia a possibilidade de estabelecer comunicação com os mortos,
abalando assim os próprios ensinamentos cristãos. Os camponeses mantinham-se fiéis
a uma mistura, constituída por práticas tradicionais folclorizadas e por um cristianismo
popularizado. Em Portugal, a urbanização apresentava-se muito reduzida (menos
de 20% da população vivia em cidades), sendo enorme o peso dos camponeses (mais
de 80%). O País era claramente rural, católico, tradicionalista e
predominantemente analfabeto. A influência da burguesia revelava-se, apesar de
tudo, maior em Lisboa do que em qualquer outra parte do território. Havia que
ter isso em conta.
Fontes
utilizadas:
Pretendíamos
abordar a história da morte como um todo. Afigurando-se-nos os testamentos como
uma importante base de apoio ao estudo que queríamos desenvolver, fizemos deles
a nossa principal fonte. Estes actos notariais reflectem sempre, à sua maneira,
a sociedade que os produziu, e um quotidiano simultaneamente colectivo e
individual. Como declaração de últimas vontades, revelam uma religiosidade vista
de dentro, não escapando também à pressão social, aos costumes e às possibilidades
económicas do testador. Mas, ao mesmo tempo que dão conta de necessidades e de
preocupações dominantes, apresentam muitas limitações, sobretudo desde que o Codigo
Civil de 1867 lhes deu um carácter predominantemente laico, marcando por
isso todo o período estudado. A tendência era para que as cláusulas de índole
religiosa e sentimental fossem substituídas por contratos ou solicitações
orais, que nos escapam de todo. Os testamentos eram então já um instrumento que
se destinava a garantir fundamentalmente a transmissão da herança em
determinadas condições. Havia, pois, que complementar esta fonte com outro tipo
de informação.
Nos designados
"espaços da morte", procurámos então outras fontes: os Livros de
Registo de Enterramentos ou os simples Bilhetes de Enterramento, que
se nos revelaram de grande interesse, não só por nos terem permitido a
quantificação dos mortos, como também por nos fornecerem outros dados: a idade,
o sexo, o estado civil, as causas da morte, a proveniência, o tipo de funeral e
de enterramento, etc. As visitas de estudo aos cemitérios escolhidos e o
registo fotográfico dos aspectos mais específicos de cada um, permitiram também
aperceber-mo-nos de como a "cidade" ou o "lugar"
dos mortos tinha a ver com o espaço donde provinham e das condições que aí usufruíam.
Por outro lado, pareceu-nos que só podíamos perceber a multifacetada realidade
que é a Morte na captação dos vários discursos que sobre ela foram produzidos.
Foi com este intuito que procurámos acompanhá-los no período demarcado e a
partir de várias fontes: O discurso oficial da Igreja, dado o peso que esta
instituição tinha, foi analisado na vertente universal que assume e nos
momentos porque passou o seu relacionamento interno com o Estado, através de
legislação, pareceres, normas, disposições...
Os periódicos da
época (jornais e revistas), forneceram-nos informações diversas sob a forma de
notícias, publicação e imagens acerca da publicitação da morte.
Neles pudemos
encontrar a expressão de sentimentos, quer de uma forma mais ou menos
padronizada quer com alguma espontaneidade. No essencial, aspectos do discurso
da morte.
Na Literatura
tentámos detectar as principais orientações dessa expressão contemporânea da
morte. Neste percurso, onde várias tendências se cruzavam, procurámos registar
as linhas que cada uma delas tornara mais marcantes. Uma vertente mais
intelectualizada abordava o assunto com sofisticação e distanciamento; mas,
numa versão de cariz
mais popular, foi possível verificar a predominância de alguns sentimentos,
talvez mais genuínos, e descrições de situações ou locais daquilo que pode considerar-se o
quotidiano mais trivial, mas por isso mesmo mais valioso. Algo de semelhante
pretendemos com o recurso a alguns testemunhos orais: a confirmação de hipóteses,
a descrição do vivido ou a informação segura do que era específico.
Principais
problemas encontrados:
A falta de
estudos com alguma profundidade do período estudado, quer a nível nacional quer
local, foi talvez a maior dificuldade sentida. Não foi fácil, por vezes, a
tarefa a que nos propusemos. Por todo o lado e quase em tudo, carregámos com o
"peso dos silêncios" e com o espanto quase automático perante tão
tétrico interesse. Sentimos bem quanto o tabu da morte é ainda forte na nossa
cultura.
A dispersão das
fontes obrigou-nos a deambular por vários locais, sendo difícil a simples
localização de algumas. Aos factores extrínsecos referidos, haverá que
acrescentar os intrínsecos, que resultam da natureza de algumas das fontes, com
realce também para os testamentos: os silêncios, a formalização dos discursos,
a sofisticação que encerram algumas fórmulas e a relutância que envolve os
vários aspectos ligados à morte, ressaltam de entre os principais.
1 - Morte e
mortalidade
A morte,
normalmente, é um processo que acompanha a própria vida. A morte mais temida,
ontem como hoje, é o tipo de morte violenta. Expressão da mortalidade:
QUADRO 1.
EVOLUÇÃO DA TAXA
DE MORTALIDADE EM PORTUGAL (1900-1918)
(%o)
ANOS PAÍS LISBOA
LISBOA
Distrito Cidade
1900 20,27 22,51
24,79
1905 19,97 22,43
27,24
1910 19,57 22,91
28,04
1918 42,21 45,26
39,21
Fonte: INE
(Instituto Nacional de Estatística), Anuário Estatístico de Portugal,
anos de 1900, 1905,1910 e 1918.
Quer o distrito
de Lisboa, quer a cidade, situam-se sempre acima da permilagem nacional. Por
sua vez, exceptuando 1918, na capital a mortalidade era maior do que no
distrito. Ali, apesar de tudo, havia mais assistência médica, o que tornou os
efeitos da “pneumónica” menos devastadores. Relativamente ao concelho de
Sintra, devemos esclarecer que se trata de um município vasto, com outros
cemitérios na zona rural, quer na parte ocidental quer na oriental. Mas, esses
elementos não estão contabilizados. Apenas tratámos os do cemitério da vila.
O Cemitério de
S. Marçal, segundo dados extraídos dos Livros de Registo de Enterramentos,
recebia, nesta altura, cadáveres principalmente das freguesias da área da Vila
de Sintra (S. Miguel, Santa Maria, S. Martinho e S. Pedro), cuja população era,
em 1900, de 5.914 habitantes e, em 1918, de cerca de 8.000.
Quanto às formas
de sepultamento, vejamos:
QUADRO 2.
ENTERRAMENTOS E
DEPÓSITOS EM JAZIGO, POR SEXO (1900-1918)
S. Marçal
(Sintra)
Diferença
Crescimento
Mortalidade/
ANOS Masculino
Feminino Total Demográfico Crescimento
N.º % N.º %
Anual a) Demográfico
1900 71 55% 59 45%
130 99 31
1905 92 61% 58 39%
150 133 17
1910 83 58% 59 42%
142 133 9
1918 210 59% 146 41%
356 66 290
TOTAL 456 59% 322 41%
778 431 347
a) Médias
calculadas a partir da "população de facto".
Fontes:
Secretaria do Cemitério do Alto do Chão Frio, Livros de Registo de
Enterramentos, anos de 1900,
1905, 1910 e
1918; e INE, Censo da População de Portugal, anos referidos.
O número de
mortos, no ano de 1918, destaca-se claramente no conjunto destes quatro
anos.
Efeitos da “Pneumónica”
em Sintra:
QUADRO 3
ENTERRAMENTOS E
DEPÓSITOS EM JAZIGO (1918),
CEMITÉRIO DE S.
MARÇAL
MESES N.º %
Outubro 170 48%
Novembro 47 13%
Dezembro 11 3%
TOTAL 228 64%
Fonte:
Secretaria do Cemitério do Alto do Chão Frio (Sintra), ibidem.
Com incidência
nos três últimos meses do ano, a gripe “pneumónica” foi seguramente a
grande responsável pelo acréscimo da mortalidade então registada.
Mortalidade
infantil:
QUADRO 4
ENTERRAMENTOS E
DEPÓSITOS EM JAZIGO (1900-1918))
CEMITÉRIO DE S.
MARÇAL
CRIANÇAS DOS 0
AOS 7 ANOS
ANOS N.º %
1900 41 32%
1905 58 39%
1910 53 37%
1918 118 33%
TOTAL 270 35%
Fonte: Idem, ibidem.
A alta taxa de
mortalidade infantil foi, em 1918, relativamente idêntica à dos outros anos
seleccionados, o que nos leva a concluir que não terem sido as crianças o
principal nível etário atingido, sendo-o gente de todas as idades, mas mais os
adultos e os adolescentes.
Quanto aos
sentimentos que rodeavam a morte das crianças, é difícil avaliá-los. Impossível
mesmo se torna saber a partir de quando a morte delas se tornou mais sentida ou
mesmo uma tragédia. Parece-nos que a maior ou menor familiaridade com a própria
morte pode ter desempenhado um papel importante, bem como o tempo durante o
qual se conviveu com a criança desaparecida. Com efeito, ainda há menos de cem anos
a maior parte das famílias europeias passava pela amarga experiência da perda
de um ou mais filhos na infância. Essa fatalidade frequente não deixou de
provocar, com certeza, uma dor profunda, porventura bem pouco diferente ao
longo dos tempos. Para o período que tratámos e para a região de Lisboa, em
geral, tentámos analisar esses sentimentos a partir de algumas manifestações
inseridas em fontes que, desde o início, incluímos no nosso estudo. Predomina a
imagem da morte traiçoeira, que sempre consegue os seus intentos contra as
indefesas crianças e as rouba prematuramente ao convívio dos pais.
O suicídio:
Nos Livros de
Registo de Enterramentos e Bilhetes de Enterramento consultados, só
muito raramente a referência ao suicídio aparece claramente expressa, pelo
que não nos foi possível elaborar, a partir deles, qualquer estatística com
algum significado. Não são, por isso, uma fonte que valha a pena
explorar para tal efeito. Recorremos portanto à estatística oficial
existente, para os anos que tratámos.
QUADRO 5
EVOLUÇÃO DO
NÚMERO E TAXA DE SUICÍDIOS (1900-1918)
PAÍS (Cont. e
Ilhas) Distrito de Lisboa Lisboa (Cidade)
ANOS TAXA p/
TAXA p/ TAXA p/
N.º 100.000 hab.
N.º 100.000 hab. N.º 100.000 hab.
1900 148 2,7 66 9,3
29 8,1
1905 283 5,1 71 10 25
7
1910 352 6,4 116 16,3
50 14
1918 390 6,5 160 18,7
54 12,4
Fontes: INE,
Anuário Estatístico de Portugal, anos de 1900, 1905, 1910 e 1918; e Estatística
do Movimento Fisiológico da População de Portugal, 1901-1910 e 1918.
Como pode
ver-se, o distrito de Lisboa supera a taxa da capital e, em muito, a nacional.
Mas, quanto a Sintra, pelas razões indicadas, nada de concreto se pode comparar.
2 - Preparação
da morte: Cuidados com o corpo e com a alma.
É sabido que as
últimas vontades se manifestam cada vez menos através dos testamentos, à medida
que a vida privada assume um carácter mais íntimo e decorre predominantemente
no seio da família contemporânea. Também não era indiferente o avanço do
laicismo patente, apesar de tudo, no enquadramento legal que fizemos. Assim, o
recurso a cartas ou a um simples papel serviam algumas vezes para as manifestar.
A maior parte, no entanto, seriam seguramente transmitidas oralmente aos familiares,
amigos ou pessoas de maior confiança, e contemplariam os aspectos de ordem
material e espiritual mais preocupantes. Mas, como é óbvio, sobre estas formas não
há regulamentação oficial. Apenas pudemos obter a confirmação dos nossos entrevistados
de que alguns que tinham essas preocupações recorriam a tais meios.
É, pois, bem
mais difícil penetrar no ambiente familiar e captar os sentimentos que o
rodeiam, do que enquadrar as disposições expressas nos documentos escritos,
como são os testamentos. Estabelecemos, portanto uma relação, englobando Sintra
e os dois concelhos vizinhos de Oeiras e Cascais:
QUADRO 6
RELAÇÃO ENTRE O
NÚMERO DE MORTOS E OS TESTAMENTOS
EFECTUADOS EM
SINTRA, OEIRAS E CASCAIS (1900-1918)
N.º DE MORTOS
N.º DE
TESTAMENTOS
ANOS (3
Cemitérios) (3 Concelhos) %
1900 400 67 17%
1905 508 64 13%
1910 305 54 18%
1918 560 33 6%
TOTAL 1.773 218 12%
Fontes: AHS
(Arquivo Histórico de Sintra), ACO (Arquivo da Câmara de Oeiras), e AHMC
(Arquivo Histórico Municipal de Cascais), Arquivo da Administração do Concelho,
Livros de Registo de Testamentos, anos de 1900, 1905, 1910 e
1918.
De facto, só uma
pequena percentagem da população deixava expressa em testamento as últimas
vontades. A diminuição, em 1918, reflecte, mesmo assim, algum efeito da morte “antecipada”.
No Preâmbulo dos
testamentos públicos a fórmula inicial mais utilizada era: “Saibam quantos
virem este testamento público, que no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo..."
No dos testamentos
cerrados encontrámos, quase sempre, fórmulas religiosas, que vão desde um
"Em nome de Deos, Amen." a uma invocação mais dirigida: "Em nome
da Santíssima Trindade, Padre Filho e Espírito Santo..." Outras vezes,
incluindo a Virgem e vários santos como intercessores celestes.
A fórmula mais
frequente também nos testamentos públicos é: "Declara que é católico,
apostólico, romano, que morreu e viveu nesta fé e nela espera morrer." Sabe-se
que o formulário usado nos testamentos públicos era da lavra do próprio
notário, que seguia um estereótipo em uso no cartório, por vezes desde há muito.
Pensa-se que, mesmo indirectamente, ele reflecte um sistema de representações colectivas.
Nos testamentos de Sintra, depois da fórmula inicial, destaca-se de imediato uma
referência às questões de natureza religiosa, como fazendo parte da estrutura
de qualquer testamento.
Algumas
cláusulas exaradas nos testamentos, sobretudo nos cerrados, contemplavam as
situações mais diversas, por exemplo, desde o recomendar à esposa que
continuasse a empenhar-se na educação dos filhos ao pedir a estes que seguissem
sempre os conselhos da mãe.
Principais
preocupações e receios expressos: Relativos ao corpo
Algumas das
preocupações relativas ao corpo, contidas nos testamentos, tinham a ver,
directa ou indirectamente, com certos receios, mais ou menos expressos. Outras
prendiam-se com a tradição, a condição social e as próprias crenças. Um receio
bastante divulgado, no fim do século XIX e no princípio do seguinte,
relacionava-se com a possibilidade de se ser enterrado vivo.
Dada a
predominância dos valores religiosos, é de supor que, quando estava proximamente
em jogo a salvação eterna, se recorria mais à confissão, seguida de comunhão.
Eram atitudes quase rotineiras para os crentes quando a morte dava os primeiros
sinais de "aviso". Os nossos entrevistados do Centro de Dia da
Terrugem não deixaram de o mencionar.
Quanto aos
chamados "bens de alma"
Nos testamentos,
pedia-se que os sufrágios fossem cumpridos "o mais depressa possível"
ou estipulava-se um prazo. Quase sempre, este era no máximo de um ano,
verificando-se de facto uma grande concentração deles no dia da morte e no primeiro
mês. Esta rapidez significa como, no inconsciente colectivo, o julgamento individual
tinha lugar após a morte e a expiação "post mortem" era importante. A
alma poderia então usufruir mais cedo de um período de felicidade, enquanto
aguardava o dia do Juízo Final, momento em que a Ressurreição ocorreria em
plenitude. Expressão dos sufrágios:
Era já muito
escassa a referência a missas, em toda a região de Lisboa. Quanto a esmolas,
procedemos a uma contabilização que foi possível especificar:
QUADRO 7
TESTAMENTOS DO
CONCELHO DE SINTRA (1900-1918)
ESMOLAS
(Importâncias envolvidas, em mil réis)
Concelho
Testamentos Testadores % em relação
IMPORTÂNCIAS
(em mil réis)
Consultados que
dispõem Ao Total Pobres das Pobres de outras Viúvas Outros TOTAL
Freguesias
Freguesias
Sintra 124 2 2% 5
0 0 6 11
Fonte: AHS,
Arquivo da Administração do Concelho, Livros de Registo de Testamentos,
anos de 1900, 1905, 1910 e 1918.
Apenas dois
testadores se referiam a este tipo de sufrágios também. Quanto a legados pios,
nos anos consultados, a Misericórdia de Sintra só foi contemplada uma vez com
50 mil réis.
Como já se
referiu, os testamentos já não eram o meio mais usual de transmitir estes
desejos.
3 - Onde se
morria?
Nos concelhos
limítrofes de Lisboa não existia ainda morgue e também não foram encontrados
registos de mortos provenientes de cadeias ou asilos. Sendo assim, partimos do
princípio que só havia duas proveniências: a residência e o hospital. Com os
elementos recolhidos, elaborámos o seguinte quadro:
QUADRO 8.
MOVIMENTO DO
CEMITÉRIO DE S. MARÇAL (1900-1918)
PROVENIÊNCIA DOS
CADÁVERES
ANOS Residência
Hospital Total
N.º % N.º %
1900 102 78% 28 22%
130
1905 105 70% 45 30%
150
1910 106 75% 36 25%
142
1918 258 72% 98 28%
356
TOTAL 571 73% 207 27%
778
Fonte:
Secretaria do Cemitério do Alto do Chão Frio (Sintra), Livros de Registo de Enterramentos, anos de 1900, 1905,
1910 e 1918;
No Cemitério de
S. Marçal (Sintra), mais de 25% dos cadáveres que aí deram entrada provinham do
Hospital da Misericórdia de Sintra (27%, em média, para os quatro anos). Cerca
de 75% terão morrido em casa (73%, em média, também para os quatro anos).
A percentagem
verificada em S. Marçal deriva exclusivamente da assistência prestada no
Hospital da Misericórdia de Sintra. Aí iam muitos pobres morrer. Mais de um
quarto das pessoas que foram enterradas naquele cemitério passaram por este hospital.
Esta percentagem ultrapassa o conjunto dos cemitérios de Lisboa (22%) e seria mais
comum nas décadas seguintes. As razões de tal afluência prender-se-iam mais com
a assistência de ordem humanitária e espiritual do que médico-assistencial.
Uma idosa do
Centro de Dia da Terrugem contou-nos como faleceram o pai e a mãe. Tiveram
ambos morte repentina: "Uma
rica morte... porque não sofreram nada", considera ela.
4 - O
Post-Mortem:
O anúncio da
morte era o primeiro aviso à comunidade, partindo do quarto do moribundo, mas
envolvendo a partir de então uma difusão da notícia, que podia assumir várias
formas e atingir aspectos mais ou menos complexos. Também aqui o meio e a
condição social desempenhavam o seu papel: nas localidades mais pequenas ou nos
espaços com alguma individualidade própria (como nos meios predominantemente
rurais ou nos bairros das cidades), havia uma série de costumes ancestrais que
eram accionados de imediato. Sabemos como ainda hoje alguns deles se mantêm e
continuam a ser sintomas de uma solidariedade esperada.
Os nossos
entrevistados da Terrugem confirmaram a passagem da notícia de um falecimento
de boca em boca entre os membros da comunidade. Utilizava-se também o sino da
igreja que, em código que toda a gente conhecia, anunciava se o falecido era
homem ou mulher: 3 badaladas, para o homem; 2 badaladas, para a mulher. Para
quem queria ou podia pagar, havia o toque de "sinais" durante um dia
(simples) ou dois dias (dobrado), de hora a hora: 3 pancadas seguidas no sino
pequeno e 1 pancada no sino grande, pausadamente, como no primeiro anúncio. Era
ainda costume um "cabo chefe" levar a notícia a outras povoações
vizinhas para que, quem pudesse, comparecesse ao funeral. Esclareceram que
estes procedimentos se mantiveram até há cerca de 50 anos, antes da divulgação
do telefone.
O jornal
republicano O Concelho de Cintra, em 1910, possuía uma secção de
"Necrologia", onde recolhemos este simples anúncio:
"Falleceu
no dia 2 do corrente o Sr. [...], antigo vereador da Camara municipal
e commerciante n'esta villa. Enviamos a toda a sua familia as nossas
condolencias e em especial ao nosso amigo e valioso correlegionario, [...], sobrinho do
fallecido."
Nos testamentos
analisados, o que algumas vezes acontecia pode resumir-se a duas atitudes: ou o
testador dizia como havia de fazer-se ou pedia para não se fazer nada.
Relativamente à
primeira opção, encontrámos várias formas, como por exemplo estas:
Um testador de
Sintra determinava:
"[...]. Que só no dia
immediato ao enterro d'elle testador é que uma mulher anunciará o seu fallecimento.”
Outro testador
de Sintra era peremptório:
"[...]; não quer
participação do seu fallecimento em jornaes, cartões ou cartas".
A preparação do cadáver, por sua vez, estava relacionada com as convicções de cada um, mas muito mais com a sua condição social.
A preparação do cadáver, por sua vez, estava relacionada com as convicções de cada um, mas muito mais com a sua condição social.
Na cidade, a
tendência era já para cada vez mais se recorrer aos serviços e artigos das
agências funerárias ou aos serviçais, entre as pessoas mais abastadas. Nas pequenas
localidades e nas vilas, os que morriam em casa eram preparados pelos familiares
e amigos: higiene pessoal, incluindo lavagem do corpo (e barbear para os homens);
vestir com a melhor roupa, que alguns iam reservando em vida. Ainda hoje, nos
meios rurais, é predominantemente assim. Os serviços de uma agência são requisitados
quase exclusivamente para os que morrem no hospital, em virtude da burocracia
ali exigida e da falta de controle sobre o cadáver por parte dos familiares. No
que respeita à exposição do defunto, na época que tratámos, os principais
aspectos estavam consagrados nos costumes e regulados nos Tratados e Manuais de
Civilidade e Etiqueta. Estes indicam os seguintes comportamentos a ter neste
domínio: a transformação do quarto ou outro compartimento da casa em câmara ardente,
coberto de panos negros e de crepes, com um catafalco onde se colocará o caixão
aberto; o fecho das janelas para evitar a luz exterior; o evitar de todos os
ruídos à volta; a colocação de um crucifixo à cabeceira duma mesa, onde em dois
grandes castiçais devem arder velas; e a colocação de um copo cheio de água
benta e de um ramo de buxo para os visitantes poderem aspergir o defunto.
Se bem que este
conjunto de normas pressuponha fazer da morte de alguém mais um grande
acontecimento social, a verdade é que ela o é sempre, com maior ou menor
encenação. Inevitavelmente, inovações próprias de um tempo de forte desigualdade
social, como este, encaixam-se em hábitos ancestrais.
Nos testamentos,
encontrámos poucas referências a este particular. Também ele se incluiria nas
vagas disposições a que temos vindo a referir-nos, mas que a praxis foi
conservando e executando.
Os nossos
entrevistados confirmaram o costume de exposição do cadáver em casa durante as
24 horas que se seguiam ao falecimento e o desfilar perante ele dos que
lhe queriam prestar uma última atenção. O compartimento da casa, transformado em câmara
ardente, onde os adereços indispensáveis incluíam um crucifixo à cabeceira e duas velas dos
lados, quase sempre era o mais amplo e aí estavam os familiares mais chegados para
receber os pêsames.
A exposição
continuava na igreja durante as cerimónias que precediam o enterramento quando
havia missa de corpo presente ou na capela do cemitério.
Quanto ao
velório, nas famílias modestas, quer na cidade quer nos meios mais pequenos, a
vigília propriamente dita era sempre garantida por um grupo restrito de pessoas
de família e de alguns amigos. Nas zonas rurais, a solidariedade normalmente
existente levava a que pequenos grupos, quase sempre noutro compartimento da
casa, marcassem presença até tarde e por vezes falassem de tudo menos do morto
e não raro mostrassem pouco respeito pelo momento que a família estava a
atravessar, sobretudo quando se tratava de pessoa de idade, cuja morte é mais aceite.
Tudo isto fazia parte dos usos e costumes há muito arreigados e constituía um momento
de aproximação da comunidade.
Relativamente,
às primeiras manifestações de luto, no período estudado, esta prática encontrava-se
fortemente institucionalizada. Os Tratados e os Manuais de Civilidade e
Etiqueta continham as normas a observar e que estavam praticamente generalizadas.
Estas abrangiam nesta fase o tipo de vestuário a usar durante as cerimónias
fúnebres e por quem se devia deitar luto, além de outras indicações que era de
bom tom ter em atenção. O desejo das pessoas ia quase sempre de encontro ao que
estava arreigado nos costumes e nas mentalidades.
Os nossos
entrevistados confirmaram-nos que, em casa, os sinais de luto eram quase sempre
mínimos, havendo no entanto quem se preocupasse em guardar a loiça ou tapá-la,
parar os relógios, etc., Mas os sinais mais evidentes respeitavam às pessoas:
os familiares vestiam luto, se possível logo após o falecimento do seu ente querido.
Convinha que quando começassem a chegar os estranhos já os parentes do defunto
os recebessem de luto pesado. A manifestação de dor por intermédio do vestuário
era pois a mais comum, se bem que não se adoptasse relativamente à morte das
crianças.
5 - O Funeral:
Publicitação
A participação
da morte pelo jornal incluía, a maior parte das vezes, o convite para o
funeral, de uma forma directa ou implícita.
Os jornais
publicados no concelho de Sintra, entre 1900 e 1918, estavam condicionados, à
partida, pelo facto de a sua publicação ser, no mínimo, semanal. Deste modo,
era quase sempre "a posteriori" que a publicitação do falecimento e
do funeral se faziam.
A maioria dos
números dos jornais existentes não trazia referência alguma a funerais
realizados, nem sequer a qualquer aspecto relacionado com a morte. Nos restantes,
eram escassos. Por outro lado, a publicidade dada à morte quase se restringia ao
anúncio e/ou publicitação do falecimento e do funeral. O Jornal Saloio, sob
o destaque de "Falecimento", trazia, por exemplo, este caso:
"Falleceu
no dia 1.º na sua residencia em S. Pedro, a Sr.ª D. [...], estremecida
mãe dos nossos estimados amigos e assignantes srs. [...]. O seu funeral,
que se realisou no dia 3, foi extraordinariamente concorrido, vendo-se n 'elle
representadas todas as classes sociaes. Sobre o feretro foram depostas muitas
coroas, entre as quaes sobressahiam as offerecidas por seus filhos, e as dos
empregados do importante estabelecimento
dos Srs. [...]. O corpo ficou
depositado em jazigo de familia, no cemiterio de [...] , em S. Pedro. À
enlutada familia, enviamos a expressão do nosso sentimento."Jornal Saloio, Sintra, n.º
145, 8 de Dezembro de 1900, p. 1.
A Gazeta de
Cintra, periódico monárquico como o anterior, além de publicar alguns casos
de falecimento e funeral, publicitava alguns "Agradecimentos" e a celebração
de "Missas" em sufrágio de pessoas recentemente falecidas.
Quanto à atitude
dos testadores acerca da publicitação do seu funeral, eram muito poucos os que
se lhe referiam.
Os nossos
entrevistados da Terrugem contaram-nos que, antes da saída do préstito, as
pessoas se concentravam em casa do defunto. A urna era colocada numa carreta,
puxada por dois homens de cada vez até ao cemitério. Era frequente os vizinhos,
que por qualquer motivo não podiam comparecer, pagarem a quem por si o fizesse.
Depois do funeral, a família do falecido pagava um quarto de pão e meio litro de
vinho, na taberna da povoação, a todos aqueles que o desejassem. Mesmo os que tinham
poucas posses, caprichavam em cumprir o costume.
O préstito
fúnebre
Nos testamentos
analisados, encontrámos algumas referências directas ao préstito fúnebre. Foi,
no entanto, uma ínfima minoria de testadores (cerca de meia dúzia), a
considerarem este aspecto específico.
Um testador de
Sintra, em 1900, deixava mil réis a cada pessoa que o conduzisse ao seu jazigo,
determinando ir "[...] à mão e não
d'outra forma".
Outro testador
de Sintra desejava ser levado na tumba da freguesia e conduzido por catorze
pobres pedintes. O Ofício dos Defuntos e a Missa, ou pelo menos a Missa,
culminavam o cerimonial a ter lugar na igreja. Este deveria terminar com a
Absolvição, que inclui o terrífico "Libera Me" e o jubiloso "In
Paradisum". A "Missa dos Defuntos" ou de "Requiem" tem
ela própria um ritual adequado, mas nos funerais das crianças, deveria celebrar-se
a "Missa dos Anjos".
As cerimónias
religiosas continuavam no cemitério, para onde seguia depois o préstito. Antes
do sepultamento, um hino de esperança - o "Benedictus"-, deveria rematar
o cerimonial, com as palavras que o próprio Jesus terá dito a Marta e a Maria (irmãs
do ressuscitado Lázaro):
"Eu sou a
ressurreição e a vida; aquele que crê em mim, se está morto, viverá, e aquele
que crê em mim não morrerá jamais".
Não achamos
ousado avançar que a maior parte dos funerais terá decorrido de acordo com as
possibilidades dos finados ou das famílias e com o mínimo de decência. Os
católicos mais fervorosos não dispensavam o acompanhamento com padre, a missa
de corpo presente, as orações junto do túmulo e, se podiam, o ofício. A redução
de despesas e um cerimonial mais modesto terão levado muitos a abdicar
facilmente do ofício ou até da missa.
As disposições
testamentárias pouco dizem a este respeito. Dois testadores de Sintra, em 1900,
não terão sentido necessidade de referir o essencial, mas apenas de dispor
sobre uma parte concreta do cerimonial. Um deles especificava:
"[...]. Que no dia do
meu enterro se diga por minha alma uma missa de corpo presente".
O outro
estipulava:
"[...]. Quero que o
meu funeral se faça com decencia, havendo officio e missa de corpo
presente".
Embora pouco
representativa, a testamentária reflectia a atitude mais frequente. A norma era
indiscutivelmente o funeral religioso/católico, de tal modo incutida, que só
excepcionalmente havia necessidade de o dizer.
6 - No
Cemitério: "Requiescant in pace"
A ideia do
cemitério como o lugar da morte, do repouso, encontrava-se já instalada.
O "Decreto
de 24 de dezembro de 1901" aprovara o "Regulamento Geral dos Serviços
de Saude e Beneficencia Publica". De acordo com ele, era às Câmaras Municipais
e às Juntas de Paróquia que competia estabelecer cemitérios dentro e fora da sede
do concelho, respectivamente. Em Sintra, o Cemitério de S. Marçal era anterior
a esta lei.
Com a República,
o "Decreto com força de lei de 18 de fevereiro, de 1911, instituindo o
registo civil obrigatorio", exigia que a declaração de óbito fosse corroborada com um certificado, assinado por facultativo legalmente habilitado
ou, na sua impossibilidade, por um atestado do regedor, afirmando que
verificara pessoalmente o falecimento ou, em último caso, a verificação
"in loco" pelo funcionário do Registo Civil.
Os pequenos
cemitérios: do adro da igreja aos cemitérios das aldeias
No concelho de
Sintra, existia ainda no princípio do século XX, pelo menos um caso em que o
cemitério era no adro da igreja matriz: o da freguesia de S. João das Lampas. O
actual cemitério, afastado da povoação, viria a ser construído mais tarde. Os primeiros
jazigos datam da década de 1920.
Em 1900, o Jornal
Saloio fazia uma interessante descrição acerca do estado de alguns
cemitérios das freguesias do concelho, mas onde também é possível apreciar alguns
procedimentos e a sensibilidade que rodeava os enterramentos e a memória dos mortos:
"[...]. O cemiterio de
Almargem [Almargem do Bispo] não é d'aquelles que se encontram em peores
condições, mas o que se vê é que além da carencia absoluta de vigilancia e
policia, não se fazem ali os enterramentos à profundidade que é recomendada
pelas leis e regulamentos sanitarios, e é facto averiguado, que rarissimas
vezes, ou talvez nunca, os cadaveres ali sepultados são cobertos de cal. Outro
tanto sucede nos outros cemiterios, das freguesias ruraes; e o de S. João das
Lampas, que é ainda hoje no adro da egreja parochial é vedado por uns muros
muito baixos, e n'elle pastam à vontade os gados da visinhança, sendo frequente
encontrarem-se à superfície ossos humanos, [...].
No da Terrugem,
que é de todos, talvez o que em melhores condições se encontra, tambem o uso de
cal está banido, e ali, como no de S. João são sepultados os cadaveres sem que
haja certidão d'obito, nem bilhetes de enterramento.
Estes e outros
factos que denotam uma grande falta de respeito pelos mortos, propria de uma
civilisação pouco adeantada, merecem a atenção da auctoridade, e para ella
appelamos.
Se os parochos
com o seu conselho nada podem ou querem fazer, a auctoridade com a sua força,
pode e deve obstar a estas irregularidades, e degradantes espectaculos."
O cemitério da
vila
Acerca do
Cemitério de S. Marçal, com cerca de 10.000 m2 de área, podemos encontrar em
vários números do Jornal de Sintra, de 1991, na Secção "Velharias
de Sintra/Cemitérios Antigos" e da autoria de José Alfredo, investigador autodidacta de
Sintra, já falecido, uma descrição pormenorizada das vicissitudes por que passou, desde a
deliberação da sua construção, em 1890, até à sua benção, em 1896.
Destinava-se
este cemitério a substituir o superlotado e acanhado Cemitério de S. Sebastião,
na zona da Estefânia. Localizado à saída, junto à estrada que conduz a Mafra,
destinava-se a dar serventia às freguesias de S. Martinho, Santa Maria e S. Pedro.
Desde a década de 1980, existe um novo cemitério, o do Alto do Chão Frio, junto
à estrada Lourel-Ericeira, para onde são levados a maior parte dos cadáveres, mantendo-se
o de S. Marçal ainda activo para alguns enterramentos (concessões, talhões específicos,
crianças...) e depósitos em jazigos.
Tipos de
sepultura:
QUADRO 9
MOVIMENTO
CEMITÉRIO DE S. MARÇAL (SINTRA) –(1900-1918)
TIPO DE
SEPULTURA
ENTERRAMENTO
DEPÓSITO EM
JAZIGO
ANOS Cova Sem
Caixão Individuais/Familiares TOTAL
N.º % N.º % N.º
%
1900 123 95% 54 42% 7
5% 130
1905 146 97% 55 37% 4
3% 150
1910 138 97% 45 32% 4
3% 142
1918 345 97% 82 23%
11 3% 356
TOTAL 752 96,50% 236
30% 26 3,50% 778
Fonte:
Secretaria do Cemitério do Alto de Chão Frio (Sintra), Livros de Registo de
Enterramentos, anos de 1900, 1905, 1910 e 1918.
Sem vala comum e
sem jazigos municipais, os cadáveres entrados no cemitério municipal de Sintra
iam quase exclusivamente para uma cova individual (cerca de 97%, em média).
Os pouco mais de
3% davam entrada em jazigos particulares. Nem por isso a percentagem dos que
não tinham direito a caixão deixava de ser elevada (30%, em média), apesar de
haver sofrido um ligeiro decréscimo ao longo do período.
Nos Livros de
Registo de Enterramentos encontrámos algumas anotações sobre o "funeral gratuito".
QUADRO 10
MOVIMENTO DO
CEMITÉRIO DE S. MARÇAL (1900-1918)
FUNERAL GRATUITO
ANOS N.º % Total
1900 66 51% 130
1905 91 61% 150
1910 - - 142
1918 115 32% 356
TOTAL 272 43% 778 a)
a) 636,
excluindo 1910.
Fontes:
Secretaria do Cemitério do Alto de Chão Frio, Livros de Registo de Enterramentos, anos de 1900,
1905, 1910 e 1918.
A percentagem é
elevada, sobretudo em Sintra (43%, média dos 3 anos), sendo em Oeiras menos de
metade (15%, em média) e em Cascais muito baixa (3%, em média). Lembramos que
esta relação percentual, relativamente ao total de cadáveres, supera sempre a
daqueles que não levavam caixão. Daqui podemos concluir que a modalidade de
"enterro gratuito" não incluía necessariamente o caixão. Por vezes,
este era pertença da paróquia ou da Misericórdia e apenas servia para
transportar o cadáver até ao cemitério.
Alguns
testadores indicavam não apenas o cemitério onde pretendiam ficar, como também
o tipo de sepultamento desejado. Mas, a grande maioria refugiava-se em expressões
vagas ou imprecisas, a que já nos referimos a propósito do funeral, em geral:
"um funeral
com decência", "conforme uso e costume da terra", "como
costuma usar-se com as pessoas da sua qualidade e haveres", "ao
critério do testamenteiro(a)", etc.
Em povoações
como a Terrugem, por exemplo, muitos dos familiares vivem na freguesia, têm lá
os seus mortos. Ao adquirirem uma concessão perpétua, criaram também um
prolongamento do património familiar. Cuidar dele é preservá-lo; venerar quem
lá se encontra, é quase uma rotina. A visita ao cemitério, àquele local, tem
cada vez mais sentido.
Quanto à memória
do finado, o sentimento mais claramente expresso nos documentos escritos era,
inequivocamente, o da saudade.
Nos cemitérios,
esse sentimento tão português podia então encontrar-se expresso em profusão,
misturado com os de amor, fé, reconhecimento..., como, aliás, acontecia noutras
latitudes. É ainda hoje, seguramente, o que mais sobressai nos cemitérios
visitados: "À memória de... Eterna saudade." Expressão da saudade é
também o luto.
7 - O luto para
além do funeral
No Ocidente,
segundo o sociólogo francês Louis-Vincent Thomas, as missas, as visitas ao
cemitério e outras manifestações do culto da lembrança, que ocorrem nesta fase
do luto, têm sempre a finalidade de instalar o defunto no seu estatuto de
sobrevivência: entre os eleitos de Deus, para os cristãos; na memória dos sobreviventes,
para os agnósticos. Por isso, o ritual funerário só acaba realmente com o "levantamento
do luto", geralmente acompanhado de ritos de rememoração.
A ideia que os
nossos entrevistados nos deixaram a este propósito, foi a de que se colocava
muito rigor no respeito pelo luto. As mulheres, por norma, vestiam todas de
preto, por 1 ano ou 6 meses, conforme o grau de parentesco que as unia ao finado.
As viúvas, na sua maioria, vestiam de preto por toda a vida. Os homens, depois das
cerimónias fúnebres, em que o uso de roupas pretas era aconselhado, vestiam, em
regra, peças mais escuras e colocavam uma lista de pano negro no braço ou na
lapela.
Ao longo do
período estudado, assistimos a uma certa laicização das atitudes e a uma
irreversível secularização dos locais da morte. Mas a omnipresença do fenómeno
religioso aconselha-nos a falar apenas numa limitada descristianização.
Seguramente, a
Morte não constituía ainda o tabu que viria a tornar-se a partir da década de
1920.
Ao terminar,
queremos deixar o nosso singelo testemunho de que a Morte é uma temática muito
complexa e envolvente, que nos tocou profundamente. Independentemente do mérito
que este trabalho possa ter, gostaríamos que desse pelo menos um modesto
contributo para que este "interdito" o seja cada vez menos.
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