sábado, 22 de dezembro de 2012

Umn texto de Maria Almira Medina



A MEMÓRIA É UMA ROSA ABERTA

EVOCAÇÃO DO PARQUE DA PENA
COMUNICAÇÃO AO III ENCONTRO DE HISTÓRIA DE SINTRA, PROMOVIDO PELA ALAGAMARES EM MAIO DE 2007.
  

É de memória que venho conversar. E de reconhecimento. Lembro o meu Pai, António Medina Júnior que, com uma letra de bom desenhador que era, me deixou escrita, num minúsculo papel, a seguinte frase: “O reconhecimento é a memória do coração.” Creio que entendi. Creio que aprendi. Conservo o papel.

Reconhecidamente, saúdo a família de Carlos de Oliveira Carvalho, nas pessoas de seus netos, Carlos e Maria Luísa, e de sua bisneta Teresa – a quem me ligam laços fortes de amizade e de companheirismo académico – que tão solícitos foram em ceder-me um sem-número de informes. Saúdo, ainda, a minha querida amiga Emília Reis que, felizmente, fez de Sintra sua terra de adopção, direi de devoção e, com tanto empenho, me acompanhou e ajudou a documentar este trabalho que, sem ela, se apresentaria mais pobre.

E como de memória de coração se trata, lembro José Alfredo da Costa Azevedo, meu amigo-irmão já falecido, que me ensinou alguns caminhos verdes desta nossa terra – entre eles, os que me fizeram ir ao encontro de José Jorge Morgado, jardineiro do Parque da Pena, nos anos 40, e de sua mulher, que se nos dava pelo nome de ti’Adelina. Uma lembrança comovida para todos eles. Uma vénia à Exma. Assistência e aos meus Colegas de mesa. Outra vénia à Alagamares que teve a iniciativa deste Encontro; outra à Câmara Municipal de Sintra que, compreensivamente, o apoiou.

Quando eu era menina, visitava a casa de Carlos Eugénio de Oliveira Ferreira de Carvalho, o tão conhecido e estimado “Carvalho da Pena”. Nascido em 1870, faleceu a 25 de Julho de 1940 na “Vila de S.Miguel” situada em Sintra, na Rampa do Castelo, onde se encontra, também, a Quinta da Abelheira, que foi habitada pelo rei D.Fernando enquanto decorreram as obras de construção do Palácio da Pena. Um pouco abaixo, na base da rampa, funcionou o colégio-liceu de Santa Maria, – hoje o nº. 1 da Rua da Trindade – mais tarde residência do Dr. António Joyce, director da Emissora Nacional.

O “Carvalho da Pena” passava, garboso, a cavalo, de capa ao vento, como um príncipe das estórias, chapéu de abas largas e uma bigodaça farta.

Depois de D. Fernando e da Condessa d’Edla, foi ele um dos mais importantes fomentadores da plantação florestal do Parque da Pena. A ele se deve, também, o mérito de cuidar, com humanidade e preocupação, do pessoal trabalhador e guardas florestais, criando condições higiénicas nas casas onde viviam com suas famílias.

José Alfredo da Costa Azevedo, num artigo publicado a 4 de Novembro de 1972, no “Jornal de Sintra”, escreve: “No tempo do antigo regente Carlos de Oliveira Carvalho, não se cortava uma árvore sem sua autorização. Que saudades do velho “Carvalho da Pena!”.

Uma vez, já ele se encontrava doente, convidou-nos a dar um passeio no seu trem privado. Corremos grande parte da serra e, sem solenidade alguma, um guarda, por sua ordem, afastou uma grande pedra que vedava a entrada de uma estrada para os lados da Peninha. O trem seguiu e o velho Carvalho, esse grande e saudoso funcionário público, a quem Sintra tanto ficou a dever, disse: “Pronto! Inaugurámos, oficialmente, mais uma estrada na nossa majestosa serra!...

Depois, já no Parque da Pena, junto às estufas, estando presente o guarda José Morgado (outro grande e competente funcionário, já falecido), notámos que o nosso saudoso e malogrado amigo Carvalho tinha lágrimas nos olhos... Inquirimos: “então, que é isso?”. Resposta: “tolices de velho! Mas vejo que estou no fim e não sei quem tratará amorosamente disto, depois da minha morte...”José Alfredo comenta: “tinha razão para chorar.”

O engenheiro silvicultor Prof. Mário de Azevedo Gomes, neto da Condessa d’Edla, também ele lhe faz dezenas de referências elogiosas na sua “Monografia do Parque da Pena”. Tomou mesmo como ponto de partida para este seu trabalho o “Guia do Parque da Pena”, o mapa-planta à escala de 1/2500, de 1918 e os livros de campo do Administrador Florestal.

O “Guia”, com texto em português e francês, insere uma descrição geográfica e histórica dos monumentos e sítios importantes a visitar, documenta as espécies arbóreas e jardins, e é acompanhado de uma planta onde estão sinalizados com as respectivas cotas para mais facilmente poderem localizar-se. Repare-se que a entrada no Parque era pública e gratuita a todos os peões que o desejassem visitar, desde o nascer ao pôr do sol “sic”, e que: “Os visitantes teem direito a seguir de carruagem ou a cavallo até ao Palácio, entrando pelo Portão Principal, mas os que desejam percorrer o Parque, utilizando-se dos mesmos meios de condução, são obrigados ao pagamento da taxa de livre trânsito da seguinte importância: Trem ou automóvel – 5 escudos Cavalo – 2 escudos e 50 Bicicleta ou jumento 1 escudo e 50 centavos”

É curioso que este “Guia” tenha sido editado pela importante e saudosa livraria e papelaria centenária “A Camélia”, de Júlio Pinto Tavares. Numa das referências a “Carvalho da Pena”, Mário de Azevedo Gomes aponta uma captação moderna de água para um tanque da rega, que correspondeu, suficientemente, às necessidades dos viveiros e fala da criação de percursos redondos e de meia-lua, para facilitar os acessos na Tapado do Mouco, onde se situa o Chalet com o mesmo nome. Foi este residência de D. Augusto, filho de D. Fernando, e de seu ajudante de campo, bem como de Domingos Morgado e filhos, um dos quais, José Jorge, que eu conheci.

Informa, também, que, no tempo do antigo administrador, no Chalet da Condessa funcionava um Museu Florestal, aberto de 12 em 12 horas, até ao sol posto, com exposição de madeiras e outros produtos florestais e refere um viveiro de espécies florestais exóticas para venda avulso e vulgarização.

Não me alongo mais no apoio às citações – inúmeras e elogiosas – que correspondem às obras de beneficiação introduzidas por Carlos Carvalho, quer a nível florestal quer a nível de estruturas em que estão incluídas as casas de habitação de pessoal, a que, já atrás, referi. Uma vontade férrea e um carácter notável caracterizavam “Carvalho da Pena”. O “Diário de Noticias” de 30 de Julho de 1924, precisamente o dia seguinte ao da inauguração do Casino, noticia que a Sociedade de Turismo de Sintra se propôs iluminar o Castelo dos Mouros, o que foi aprovado pelo Ministério da Agricultura. O administrador do concelho, entretanto, não consente a iluminação porque o Ministério da Instrução a proibia. Carlos Carvalho objectou que, como também fazia parte daquela Sociedade e era funcionário do Ministério da Agricultura, só do seu ministro recebia ordens. O mal-entendido desfez-se e o Castelo acabou por ficar iluminado.

Mais tarde, aquando do falecimento da Condessa d’Edla, no Diário de Lisboa” de 23 de Maio de 1929, na rubrica “A Cidade”, diz-se: ““Publicamos, abaixo, uma carta que nos é enviada pelo distintíssimo engenheiro florestal, Homem de bem e homem de acção, Sr.Carlos de Oliveira Carvalho, que superintende nas Matas Nacionais de Sintra e, portanto, no Parque da Pena, a que está ligado o nome da ilustre senhora que ontem desapareceu do silêncio da sua casa de Santa Marta para o silêncio eterno do túmulo.

Transcrevo: “Sr. Director – O Diário de Lisboa de anteontem publicava um belo artigo, em fundo, e que se intitulava A Senhora Condessa d’Edla. Dele recorto o período final: Dentro de três dias nem nós nos lembraremos do que acabamos de evocar, e na história ela não será já nem sequer um pretexto. Quando muito – se algum cronista romântico para ahi ficar - um ramo de cravos...Não será assim. Permita-me, sr. Director, que prove que o não será. O Parque da Pena, em Sintra, iniciado em 1839, pelo Rei D. Fernando II, hoje considerado como uma das mais notáveis colecções botânicas florestais do mundo, propriedade do Estado, e que é uma prova do génio artístico desse rei e do seu amor a Portugal, muito deve à colaboração da senhora Condessa d´Edla, desde o seu casamento em 1869. Dirigia ela directamente os trabalhos com seu esposo, conhecendo o valor das espécies botânicas, a sua colocação, tratamento, e ainda há dois anos as citava pelos seus nomes scientíficos. E não quero deixar de lhe narrar um simples facto de comovente significação: Em Novembro do ano passado, a senhora Condessa d’Edla solicitou, na sua gentileza de espírito, ficasse assinalada uma árvore plantada por ela e D. Fernando, no dia do seu casamento, a 10 de Junho de 1869. Veja v., sr. Director, quanto pode significar este pequeno detalhe, em favor da alma daquela ilustre Mulher. A Administração dos Serviços Florestais conserva o nome de “Jardim da Condessa d’Edla” a um dos mais belos trechos do Parque e por ela delineado.

Desta maneira o seu nome está ao Parque vinculado, e recordando a todos, “não só por um ramo de cravos de algum romântico”, mas sim, e principalmente, por maciços de flores, a sua acção e o seu espírito de mulher tão afeito à Patria adoptiva, e à “domus” encantadora de Sintra, onde ela viveu. Se o seu corpo tem de repousar ao abrigo de uma Cruz, cópia da Cruz Alta do Parque da Pena, as árvores e as flores recordarão em Sintra o seu nome, enquanto uma simples placa de mármore não indique aos visitantes que foi a D. Fernando II e sua esposa, Condessa d’Edla, que o País deve a existência de um dos mais belos parques da Europa e talvez mesmo do mundo. Dando, estas informações a v., sr. Director, não correspondem elas de maneira alguma a uma renúncia das minhas ideias políticas, mas sim elas são uma homenagem à ilustre senhora que aureolada pela sua idade e respeitada pela nobreza da sua alma, terminou docemente a existência.De v. Etc., Carlos de Oliveira Carvalho – (Parque da Pena – Sintra) ”

Também no “Jornal de Sintra” de 11 de Agosto de 1935, pode ler-se, a propósito da colocação da lápide-homenagem a D.Fernando II, no Parque da Pena:

““A Vila de Sintra salda hoje, para com a memória de D.Fernando II, uma dívida de reconhecimento e gratidão (...) Desejamos significar o nosso modesto mas vivo contentamento, ao Sr. Carlos de Oliveira Carvalho, por haver conseguido levar a bom termo uma pesada empresa que fica a atestar a gratidão de Sintra para com a memória dum inteligente monarca a quem Portugal deve um dos seus mais formidáveis jardins de beleza e encanto como talvez segundo não haja em toda a Europa. Merecida homenagem a quem sonhou – e cito: “o Palácio suspenso sobre aquela floresta encantada que é o Parque da Pena”.

Considerando que está por saldar a dívida de Sintra a “Carvalho da Pena”, já que só uma pequena lápide o lembra, no Parque da Liberdade, assumo uma sugestão/pedido:

que seja colocada uma placa na “Vila de S.Miguel” onde sempre viveu, desde 1911 até à data do seu falecimento, em 1940, e que seja dado o seu honrado nome a uma rua de Sintra. Este à-vontade em sugerir e pedir advém-me, com certeza, do diálogo com o minúsculo papelinho escrito pelo meu Pai. Advém-me, com certeza, do diálogo com fetos e árvores, do diálogo com as begónias tuberosas do sr. José Jorge e da ti’Adelina – e do diálogo com eles, também. É que a Feteira da Condessa era uma sinfonia: água a dessedentar os fetos; pingos de sol, por entre os verdes dos recantos frescos. Personagem relevante desta magia, o Chalet da Condessa, hoje fantasma de si próprio, por descuido dos homens que não sabem de sonhos de “eucaliptus oblíqua” –nem de património.

E como é de memórias que tenho vindo a conversar, recordo, por último, em reportagem retrospectiva, que:

Foi no Inverno de 1944 que um grande nevão queimou Sintra. Fogo branco na serra, nas casas, nas ruas. Praticou-se o esqui na estrada da Pena. As árvores e os fetos, derrubados, formavam abrigos fantasmagóricos. Bonecos de neve, gigantescos, contracenavam com a vegetação, nessa euforia branca sem limites. Lembro-me da ti’Adelina, de carrapito muito acima da nuca e gola alta a beijar-lhe o queixo: “Minhas ricas flores! Que feio que está o Parque! Que tristeza isto assim tudo branco!” Estávamos no Vale dos Fetos. A Feteira da Condessa era uma catedral de neve: fetos altos como palmeiras, vergados, numa sugestão de naves e colunas. O marido da ti’Adelina, o sr. José Jorge, era jardineiro do Parque há tantos anos que já nem lhes sabia a conta. Amava a sua colecção de begónias tuberosas e as árvores que vira crescer. Baixinho, magro, com os olhos felizes, palradores, o sr.José recordava que o pai, Domingos Morgado, tinha sido jardineiro da Condessa; tinha vindo de Mem Martins muito novinho e, dotado de uma vocação para a jardinagem, por ali ficara. E assim se tornou

indispensável a D.Fernando e um dedicado colaborador da Condessa d’Edla. Foi ele quem a ajudou a delinear “a parte nova” que vai do Jardim Inglês à Tapado do Mouco. Domingo Morgado era capaz de passar noites sem dormir para salvar uma árvore empestada de parasitas. Mais tarde, havia de ser elogiado por D.Fernando na presença do Príncipe de Gales, que veio a ser Eduardo VII.

E quando a morte o levou, ficou o sr. José Jorge a substituí-lo. À Condessa d’Edla, conhecedora profunda de arvoredo exótico e de botânica em geral, devia o sr. José Jorge tudo o que sabia. Às vezes via-a a recolhe-se a um dos mirantes, perto do chalet, a fim de preparar chá, em segredo, com as plantas do Parque. Ele ficava de guarda. Entretanto, num jornal saloio da época – “O Correio de Sintra”, de António Cunha - apareceu um artigo que se referia ao possível desaparecimento das plantas de chá que por lá havia. Mas a plantação aumentara, sim, em mais de um cento de pés, e o desmentido foi feito em jornais da capital.

Ainda lhe falei uns dois meses antes de ela morrer” – acrescentou o sr. José Jorge. “Morava lá para o fim da Rua de Santa Marta, num prédio já demolido. Entregou-me um bilhete para o sr. Carlos de Oliveira Carvalho, regente florestal, a indicar as árvores que deviam ser plantadas no outro lado da serra – Peninha e Capuchos –, as quais resistiam mais aos ventos predominantes, para abrigo da nova arborização. O sr. Carvalho achou muita graça: contando noventa e tal anos e ainda interessada pelas suas árvores!

Já em vida de D. Fernando tinha pensado nesse lado da serra, mas ele não concordou em arborizá-la, para não estragar os pastos de gado da gente pobre”.

Num recanto do Parque da Pena, a dois passos do “chalet” da Condessa, já não mora a ti’Adelina. Nunca mais o sr. José Jorge falará a alguém das “suas” árvores e das “suas” begónias. Na Feteira da Condessa a água continua a dessedentar os fetos altos como palmeiras e verdes como a ti’Adelina os queria... Nos lagos, os cisnes deslizam sem recordações. Ainda estou a ver o sr.José a abrir-me um portão que dá para a Estrada Velha. O portão fechou-se. “Até breve, amigos!” O portão fechou-se já lá vão mais de 60 anos.

Sintra, Palácio Valenças, 4 de Maio de 2007

MARIA ALMIRA MEDINA

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